Década de 70, eu te amo!

Uma análise da trajetória do diretor Arnaldo Jabor pela década de 70 até o lançamento de Eu Te Amo (1981) como forma de retrato de época

Por Lucas Morais

Eu Te Amo. Este é o nome que o diretor Arnaldo Jabor dá ao seu primeiro filme lançado nos anos 1980. Uma declaração sem destino e sem destinatário. Um amor que parte da primeira pessoa do diretor e pode ser lançado ao público, à Sônia Braga no cartaz ou a todos os nomes em sua volta. Um amor pelo cinema de uma carreira que se inicia exatamente em 1970. Uma década e grandes bilheterias depois, os anos 70 acabam… e Jabor se declara.

É natural que o fim de uma década traga reflexões sobre o que se passou. Um recorte temporal de dez anos com seus melhores e piores momentos agrupados e de fácil comparação: onde estávamos há dez anos, onde estamos agora e onde estaremos daqui outros dez anos. No Brasil, país onde tudo é mais intenso e o futuro é sempre incerto, dez anos podem ser uma eternidade.

Mais do que uma década, em 1964 se inicia o que Camilo Tavares chama de O Dia Que Durou 21 Anos. Um golpe militar na década do ié-ié-ié, da Jovem Guarda e do Cinema Novo foi um baque inesperado para uma juventude que nem teve tempo de ser transviada — entre esses jovens estava Arnaldo Jabor. Nascido exatamente em 1940, Jabor viu os anos 60 marcarem sua entrada para uma vida jovem-adulta (e sua vida no cinema) com ideais e revoluções interrompidas pela situação política nacional. Jabor conta, em 1990, que os jovens achavam que o Brasil ficaria genial, até perceberem que existia o “reacionarismo brutal da classe média brasileira”.

A instauração da ditadura no país marca o fim de uma era da política nacional e acelera o processo de reflexão sobre os anos 60. Jabor começa a produzir cinema em longa-metragem com Pindorama (1967), um documentário que coleta relatos e histórias de uma classe média recém descoberta pelo diretor. Para finalizar a obra, Jabor cita Wright Mills:

“A história da classe média é uma história sem fatos. Seus interesses comuns nunca levam à unidade. Seu futuro, nunca é escolhido por ela” (MILLS, 1951)

No mesmo ano de 1967, Ozualdo Candeias, um ex-motorista de caminhão — ou seja, um emergente da classe média — produziria uma importante obra para o cinema nacional: A Margem. O filme, de caráter experimental e totalmente produzido com recursos próprios na Boca do Lixo (região do centro de São Paulo), batizaria e iniciaria o movimento do cinema marginal, uma resposta dos jovens cineastas ao Cinema Novo. A Boca do Lixo se torna o ponto oficial para as produções independentes do cinema nacional no ano seguinte a partir do primeiro sucesso de bilheteria produzido e filmado na região: O Bandido da Luz Vermelha (1968). Nesse mesmo ano, no entanto, o AI-5 é estabelecido pelos militares, aumentando a repressão com perseguições e censura a obras artísticas.

No ano seguinte, ironicamente, Reginaldo Faria lança Os Paqueras (1969) e inicia uma revolução despretensiosa no cinema nacional: um gênero de comédias eróticas chamado Pornochanchada. Uma produção barata que gerava grande retorno com o sucesso de público e se tornou a fórmula do sucesso na Boca do Lixo, além dos dramas eróticos. Se a Boca havia descoberto a fórmula do dinheiro, o Brasil a acompanhava: o ano de 1969 marca o início do chamado Milagre Econômico, resultado das políticas econômicas com capital estrangeiro promovidas pelo governo militar. Coroado com o tricampeonato Copa do Mundo, os anos 70 no Brasil se iniciam com algum otimismo da população.

Nem cinemanovista e nem Boca do Lixo, Jabor se encontrava em 1970 ainda como diretor de um documentário. Com a onda de repressão, a arte política se via numa nova fase: a criação de alegorias e metáforas contra o regime em formas implícitas de crítica. Jabor, então, estreia seu primeiro longa de ficção: Pindorama. Jabor, em 1990, declara:

“(…) o filme tinha esse desejo alegórico de denunciar o fascismo no Brasil, mas você era obrigado a fugir por tantos meandros da Censura que você acaba não sendo compreendido, (…) ficou um filme que você não sabe nem sobre o que é. A gente não sabia pra onde ir. A gente ia criticar o que tinha acontecido, a gente ia denunciar, mas pra quem?”

Jabor começa os anos 70 enfrentando um fracasso após um documentário de sucesso. Seu olhar reflexivo e metafórico sobre a ditadura não havia sido claro o suficiente para um filme denúncia às classes intelectuais e nem popular o suficiente para ser um filme de boa bilheteria. Jabor, ex-crítico de teatro, decide fazer “um filme que as pessoas queiram ver” e buscou origem na sua adolescência: as histórias de Nelson Rodrigues. Adaptado com certa frequência nos anos 60 (8 filmes de 1961 a 1966), o autor é abandonado no cinema muito por conta de seu apoio público ao regime — esse apoio, no entanto, acabaria completamente no ano de 1972, quando seu filho foi preso e torturado pelos militares. Apesar do trágico acontecimento, foi o momento exato para Jabor retornar com o autor às telas: Toda Nudez Será Castigada estreia e Jabor consagra seu primeiro sucesso de ficção e bilheteria — tendo reconhecimento até do próprio Nelson Rodrigues, que odiava todas as suas obras adaptadas ao cinema até então — e como ele mesmo descreve: “foi uma explosão de bilheteria, o filme foi um sucesso extraordinário, eu quase morri de alegria!”.

O diretor vivia seus momentos de glória com salas lotadas, reconhecimento e premiações. Uma dessas premiações foi o Festival de Berlim, onde o filme ganhou o Urso de Prata e Jabor ganhou uma péssima notícia: seu filme havia acabado de ser proibido pela Censura. Aproveitando a grande exposição, Jabor aproveita o festival para denunciar a repressão artística no Brasil, criando um “escândalo internacional” a ponto de reverter a decisão de proibição.

Nelson volta à popularidade com grande força. O autor volta a escrever peças após 10 anos (Anti-Nelson Rodrigues, em 1974, sob a direção de Paulo César Pereio) e tem mais uma obra adaptada ao cinema por Jabor — O Casamento, romance publicado em 1966. No mesmo ano de 1966, outro autor publica uma obra também na temática nupcial: Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado. Se O Casamento (Jabor, 1974) não foi um grande sucesso, a adaptação de Bruno Barreto para Dona Flor e Seus Maridos (1976) foi de uma popularidade estrondosa e o filme estrelado por Sônia Braga se torna a maior bilheteria da história do cinema nacional até então. Numa certa síntese desse período, Neville d’Almeida junta Sônia Braga e Nelson Rodrigues, o que resulta na segunda maior bilheteria do cinema nacional até então: A Dama do Lotação (1978).

(Foto: Twitter)

Jabor se viu em outra situação de reinvenção. O Casamento (1974) não foi bem no Brasil e foi mal recebido também no Festival de São Francisco, mesmo com outra obra de Nelson fazendo enorme sucesso no cinema. Decide, então, inserir mais de si no seu próximo filme: além de escrever o roteiro, contaria uma história baseada em sua própria família, desenvolvendo sua própria linguagem e escrita pela primeira vez desde o fracasso de Pindorama. Ao contrário de sua primeira ficção, Tudo Bem (1978) foi bem recebido e venceu como melhor filme no Festival de Brasília, além dos prêmios de atuação para Fernanda Montenegro e Paulo César Pereio, voltando a atuar em um filme de Jabor após Toda Nudez.

Pereio, nascido no mesmo ano de 1940 que Jabor, naturalmente teve uma trajetória de início no cinema semelhante à do diretor. Após atuar em grandes clássicos do Cinema Novo (como Os Fuzis, Terra em Transe, O Bravo Guerreiro) na década de 60, precisou encontrar seu espaço em outros tipos de produção — e não faltou esforço: de 1970 a 1978 atuou em 34 (!) filmes, desde pornochanchadas (As Aventuras Amorosas de um Padeiro, As Loucuras de um Sedutor) à dramas históricos (Anchieta, José do Brasil, Os Inconfidentes), tornando o ator um símbolo do cinema nacional da década de 70. A proximidade com Jabor, além do mesmo ano de nascimento e dos dois filmes em parceria, também existia na relação com Nelson Rodrigues — Pereio dirigiu Anti-Nelson Rodrigues e atuou em A Dama do Lotação. A dama, Sônia Braga (nascida exatamente dez anos depois, em 1950), além de estar no cartaz das duas maiores bilheterias da história do cinema brasileiro até então, já era um ícone da televisão pela participação em telenovelas de enorme audiência (Irmãos Coragem, Selva de Pedra, Gabriela, Saramandaia, Dancin’ Days).

A década de 70 chega ao fim. As bilheterias do cinema nacional ganharam expressão, mas as pornochanchadas e a Boca do Lixo entram em declínio. João Baptista Figueiredo toma posse da presidência jurando “fazer deste país uma democracia”, mas decreta intervenção militar nos sindicatos. Nelson Rodrigues morre exatamente em 1980, um ano depois de ver seu filho finalmente ser solto da prisão pelos militares. A dívida externa de US$5,3 bi de 1970 — o “Milagre Econômico” — se multiplica por 10 e chega a US$53,9 bi dez anos depois. A sensação era, certamente, de mudança e de pessimismo. Jabor completa 10 anos de carreira passando por fracassos, sucessos, invenções e reinvenções. Após encerrar a década de 70 com Tudo Bem, começaria a década de 80 declarando seu Eu Te Amo.

O filme começa com uma filmagem de TV fazendo certa paródia do Jornal Nacional — com direito ao plim-plim da emissora — numa notícia sobre um “cheiro insuportável por debaixo da mesa do presidente da câmara”. O fato, chamado por jornalistas de “o fim do milagre brasileiro”, também teria a declaração de um faxineiro: “enfim apareceu a grande cagada nacional”. Neste fragmento independente da história do filme, o milagre citado diretamente por um veículo de notícias deixa explícito, antes da história começar, o comentário sobre a situação do país, da forma mais formal (representada pelos jornalistas) e da forma mais direta (pelo faxineiro). O óbvio resultado do milagre econômico sendo visto por todas as classes sociais.

Numa ação clara da relação entre o personagem e o ator, Paulo César Pereio interpreta Paulo, um industrial falido num apartamento moderno lotado de caixas de sutiã e aparelhos de TV. Paulo, personagem, é mais uma vítima do “fim do milagre” com sua indústria falida e seus diversos televisores — segundo Othon Jambeiro, os anos 80 começaram com 20 milhões de aparelhos de TV nos lares brasileiros. Além disso, há outra linha para a construção do personagem: Paulo, ator, vê o cinema nacional em crise após uma década de produção industrial — Pereio chegou a fazer 9 filmes só no ano de 1978 — e o declínio do gênero da época, a pornochanchada. Itens de desejo agora acumulados, como os sutiãs no apartamento. Em seus televisores, Paulo assiste às gravações de sua ex-mulher Bárbara, uma médica bem sucedida interpretada por Vera Fischer. Vera vira uma atriz símbolo das pornochanchadas quando estrela A Super Fêmea, Anjo Loiro e As Delícias Da Vida, todos lançados em 1973. No fim da década, no entanto, é contratada pela Globo e começa a fazer novelas em 1977, focando em atuar para televisão. Um ator símbolo do cinema dos anos 70 divorciado de uma ex-atriz de cinema, agora atriz de novelas.

No outro lado da trama, Sônia Braga faz Maria, amante de Ulisses (Tarcísio Meira), um piloto de avião que não pretende de nenhuma forma se divorciar de sua mulher para assumir esse relacionamento. Machucada, Maria finge ser prostituta como forma de vingança. Novamente num exercício de metalinguagem com os atores, Tarcísio representa o sucesso das telenovelas em sua carreira (foram 11 na década de 70), numa figura de galã ou herói, decolando como o avião de Ulisses. Sônia Braga, mesmo participando de diversas novelas nos anos 70, só encontra o estrelato ao protagonizar a novela Gabriela (1975), moldando a imagem de sex symbol necessária para a levar ao protagonismo de Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), A Dama do Lotação (1978). Uma atriz sex symbol que alcançou a fama com papéis sensuais no cinema (a prostituição) sendo negada por um ator símbolo do bom mocismo das novelas, num caso amoroso que representa as aparições de Tarcísio no cinema de drama histórico dos anos 70 — junto de Glória Menezes, sua mulher, estrelou O Caçador de Esmeraldas (1979) e Independência Ou Morte (1972).

Usando os atores como analogias, Jabor faz o romance entre o cinema e a TV. Os filmes e as novelas. Ulisses e Bárbara são os únicos personagens que falam em direção à câmera (além da introdução jornalística de Paulo), indicando a fácil comunicação popular das novelas. O escapismo de Maria é usar o sexo como expressão de poder, enquanto o de Paulo é assistir ao seu passado numa expressão de fraqueza.

A relação dos dois é cercada pelo medo do futuro por conta do passado — Maria ainda acredita que pode estar com Ulisses e Paulo ainda acredita que pode voltar com Bárbara. Repleto de cenas de sexo, o artifício agora não é usado como uma conquista de poder (como na pornochanchada), mas para representar a distância e o vazio dos personagens. O sexo é um elemento destrutivo que interrompe todas as formas de comunicação e construção sentimental entre os dois, que ainda não permitem a superação de suas memórias do passado.

Após Eu Te Amo, Sônia Braga não participou mais de novelas, fazendo apenas algumas participações nos anos 2000. Pereio seguiu sua carreira no cinema e (ironicamente) fez novelas de sucesso da Rede Globo na década de 80 como Partido Alto, Roque Santeiro, Anos Dourados e Salvador da Pátria. Após seu Eu Te Amo para o cinema, Jabor fez Eu Sei Que Vou Te Amar e A Suprema Felicidade, até decidir abandonar a carreira como diretor. Como Jabor escreveria em uma canção em parceria com Rita Lee em 2003: amor é novela, sexo é cinema.

Referências:

A Opinião Pública. Arnaldo Jabor. Brasil: 1967

BRUNELLO, Yuri. Nelson Rodrigues Versus Jorge Amado: Dona Flor, A Arte Dialética E O Engano Identitário. Revista Novos Rumos, v. 50, n. 1, 2013.. Revista Novos Rumos, v. 50, n. 1, 2013. Disponível em: <https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/novosrumos/article/view/3446/2667>

DA SILVA, Alessandra Kely. Brasil e o legado da década de 1980: crise e orientação da política econômica. Disponível em: <http://www.abphe.org.br/uploads/ABPHE%202017/12%20Brasil%20e%20o%20legado%20da%20d%C3%A9cada%20de%201980%20crise%20e%20orienta%C3%A7%C3%A3o%20da%20pol%C3%ADtica%20econ%C3%B4mica.pdf>

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JÚNIOR, Valsui. ‘A opinião pública’: a classe média de 50 anos atrás. A Escotilha, 2017. Disponível em: <http://www.aescotilha.com.br/cinema-tv/central-de-cinema/critica-a-opiniao-publica-arnaldo-jabor/>

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SOM, Museu da Imagem e do. Memória do Cinema | Arnaldo Jabor. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-XhjuiYNQJA&ab_channel=MuseudaImagemedoSom>.

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