Em Priscilla, a essência que perpassa o cinema de Sofia Coppola se vê em sua forma mais completa
Carolina Azevedo
A obra de Sofia Coppola é perpassada pela pulsão de fuga de uma feminilidade reprimida, e é em Priscilla que essa essência se vê em sua forma mais completa. A versão dos Ramones de “Baby I love you” insere a personagem na cena já em Graceland, a famosa residência de Elvis em Memphis, onde uma Priscilla Beaulieu (Cailee Spaeny) de dezessete anos se viu aprisionada em solidão. A abertura evoca o que se tornou o clichê de Sofia Coppola, os detalhes íntimos da vida de uma garota que se vê rodeada de glamour, mas completamente perdida para além da bruma do Chanel Nº5.
Baseado no livro de memórias Elvis & Eu, a história começa em 1959, quando a garota de 14 anos conhece aquele que aos 24 já era a grande estrela do rock americano, Elvis Presley (Jacob Elordi). Cursando o nono ano da escola na Alemanha, onde seu pai estava servindo como militar, ao lado de seu futuro marido, Priscilla se vê perdidamente apaixonada, um sentimento que parece recíproco até que ela se muda, sozinha, para a casa do astro no Tennessee.
Graceland – que teve que ser reconstruída no set de filmagem no Canadá, já que os proprietários da herança de Elvis não fizeram nenhuma concessão à diretora e muito criticaram o projeto – é o palco em que Cailee Spaeny usa de seu corpo para expressar o que a personagem jamais pôde falar. Desde o início do filme, Priscilla é autorizada a pouquíssimas palavras, primeiro pela vergonha natural à garota que mergulha em um relacionamento com tamanha estrela, e, depois, pela ameaça que o temperamento do marido representa quando se descontenta com falas da esposa. É justamente na expressividade do rosto da atriz e no cuidado que a diretora teve com cada olhar que está um dos grandes méritos do filme: não é preciso dizer quase nada quando imagens tão silenciosas gritam o significado de cada plano.
Com a diferença de altura de quase meio metro entre os atores, a dinâmica de poder dentro do relacionamento ganha mais uma metáfora visual, que também se espelha na casa. Em entrevista à Vogue, Sofia Coppola conta que, no livro, Priscilla Presley destaca o quanto a cama de Elvis parecia enorme para ela enquanto garota, e só fazia ela pensar em todas as mulheres que vieram antes. No set, Graceland parece engolir a adolescente, que em sua solidão não podia fazer nada além de brincar com o cachorro que o parceiro lhe deu para abrandar sua ausência constante.
É justamente na cama de Elvis que algumas das cenas mais interessantes do filme se passam. Em um dos vários momentos em que Priscilla espelha Maria Antonieta, a personagem se vê desejando intensamente um homem que lhe nega o prazer durante anos. O que de início parece um ato mais ou menos nobre, se torna uma obsessão incômoda por preservar a pureza de sua parceira, que vive quase encarcerada enquanto ele dorme com outras mulheres entre gravações e filmagens. Para além das traições e manipulações, o desejo reprimido é uma das faces mais torturantes do filme.
O relacionamento protagonista, no entanto, não é pintado por Coppola apenas de uma cor: o casal é construído em um jogo de luz e sombra. O magnetismo de Jacob Elordi muitas vezes abafa a violência de seu personagem, mimetizando o efeito que o próprio Elvis sempre teve sobre Priscilla, que ainda defende o amor que eles viveram. Seria muito mais fácil escolher uma narrativa moral para seguir, mas a diretora opta por mostrar uma realidade cheia de nuances que encanta o espectador, acostumado com superficialidade política no cinema. Uma das cenas mais hipnotizantes do filme resume a escolha: trancados no quarto do astro por dias, aproveitando a rara companhia um do outro, o casal brinca com uma polaroid em uma sequência que flui entre o ingênuo e o sensual, até que Elvis explode e agride Priscilla pela primeira vez. A doçura do momento anterior fica amarga de uma vez, mas sem que um sabor acabe com o outro.
Materializado como uma sequência temática de Maria Antonieta, o novo filme de Coppola usa de todo o potencial do cenário e dos figurinos para construir o mundo de glamour e devastação pessoal da personagem. Em um dos momentos mais característicos do filme, quando Priscilla está prestes a dar à luz a sua filha, ela não falha em fazer o delineado e colocar os cílios postiços antes de partir para o hospital. Similarmente, a cena em que ela combina cada arma com um vestido pode parecer caricata, mas é a imagem perfeita para ilustrar a fala do livro: “eu não sei como dizer às freiras do colégio que, a cada noite, escolho que pistola combina com a minha roupa.”
Quase vinte anos depois e com uma fração do orçamento do filme com Kirsten Dunst, Sofia Coppola parece ter aperfeiçoado a arte de integrar diversão à mise en scène sem apelar para o absurdo. Além do uso comedido da decoração, a trilha sonora de Priscilla soa mais consonante com a obra, que nem precisou das canções do rei do rock para ambientar-se – é até significativo que vozes como as de Alice Coltrane e Brenda Lee dominem a trilha sonora.
Quando Dolly Parton canta a escapada de Priscilla de Graceland, com sua versão original de “I will always love you” – cujos direitos a compositora negou a Elvis –, a libertação é amarga e cheia de um amor que ardeu demais para suportar, mas o adeus é necessário para finalmente forjar a identidade que esse cinema vem buscando junto com suas personagens.
Carolina Azevedo é editora-chefe da Revista Vertovina e repórter no Le Monde Diplomatique Brasil.