Sonho e apoteose em “Eyes Wide Shut”

O último filme de Stanley Kubrick é seu comentário final e absoluto a respeito da história da sexualidade, da psicologia e da sociedade

Pedro A. Vidal 

Eyes Wide Shut é o filme que Stanley Kubrick levou a carreira inteira para unir uma adaptação de Traumnovelle, de Arthur Schnitzler, e uma trilha sonora de György Ligeti. Representa o símbolo maior da decadência moral da humanidade e seus costumes burgueses banhados de convenções sociais esdrúxulas que permeou toda a obra de Kubrick.

A história de sonho de Schnitzler data de 1926, época em que a Áustria testemunhava a influência tardia do decadentismo, e tinha como o escritor um de seus principais representantes no país. Na virada do século, observava-se uma perspectiva pessimista em relação ao mundo, associada a uma estética que enfatizava o subjetivismo e a descoberta do universo inconsciente, revelando dimensões desconhecidas da existência.

Eis que um século depois, na virada posterior, Kubrick escolheu adaptar a obra de Schnitzler para revelar que uma peça literária de 100 anos atrás nunca havia sido tão contemporânea ao final dos anos 90. Tanto o livro de Schnitzler quanto o filme de Kubrick contestam a pressuposta educação sexual, uma máscara que cobria a patologização arbitrária da natureza humana que serviu de base para a civilização de classes.

O personagem de Tom Cruise é o símbolo maior dessa estrutura: médico, cético, um homem da ciência e da razão, mas que quando confrontado pelo desejo reprimido e o ímpeto sexual da esposa, demonstra-se incapaz de racionalizar tal situação, nem mesmo através de seu poder financeiro. Suas infantes andanças pela Nova York natalina, na procura de ir à margem da sociedade para sentir o mesmo desejo da esposa, comprova que a compreensão racional e efetiva do mundo não se deu nem mesmo na modernidade da virada do século.

Seja na guerra, na evolução ou no progresso, os filmes de Kubrick acompanham um processo de precarização das instituições e indivíduos que tomam a razão como verdade absoluta. Eyes Wide Shut enfoca essas questões na psicologia sexual da sociedade, em que, seguindo um estilo divergente da obra anterior de Kubrick, mistura ideias classicistas, como a literatura mencionada, com uma abordagem intimamente moderna.

A estrutura de Eyes Wide Shut segue um ritmo blocado, encadeadas em sequências compostas por cenas principais e cenas soltas, organizando assim o conhecimento total do filme. Ele gira em torno de uma ambientação onírica, dessa sobreposição classicista com elementos disruptivos, sem necessariamente deixar de lado sua rigidez formal e utilizar de técnicas tipicamente lynchianas.

Kubrick, vide toda a sua filmografia, se interessa mais na obsessão de manter todo o quadro em foco, escancarar as hipocrisias institucionais à plena luz. Sonho e realidade tornam-se assim uma coisa só, uma lógica onírica integrante. Nesse sentido, Eyes Wide Shut remete ao novelão de Barry Lyndon, em que as impressões objetivas aos poucos recorrem ao subjetivo. 

Gradualmente, os anseios de Cruise tornam-se fantasias coerentes, paranoias e intrigas que viram dramatização pela pura crença dramaturga e romântica naquilo, mas que, ainda assim, não concebem o inconsciente através do consciente. O incontrolável desejo do inconsciente humano não permite a descoberta efetiva de algo, apenas a ocultação da alegoria. É nesse jogo simbólico, entre a psicologia dos personagens, que a fantasia é, enfim, consumada. Não se tratava da compreensão, mas da consumação do desejo.

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