Carolina Azevedo
O novo filme de Todd Haynes se constrói nos contrastes e nas zonas cinzentas entre a moral, a política e a cultura como as conhecemos hoje. A história é sombria e perturbadora, inspirada no caso real de Mary Kay Letourneau, professora que tomou conta dos tabloides quando, em 1996, aos 34 anos, seduziu um aluno de 12 anos, Vili Fualaau. Apesar das similaridades, May December se distancia o bastante do caso de Letourneau a ponto de desprender-se das amarras da verossimilhança e da imitação, o que não deixa de fazer com que a realidade adicione uma camada sombria à narrativa.
A contradição se instala por toda parte para criar a atmosfera de inquietação que o filme causa, a começar pela fotografia. As imagens são perfeitamente estetizadas. A casa onde moram Gracie (Julianne Moore) e Joe (Charles Melton), junto com seus três filhos quase adultos, é enquadrada de modo a distrair da diferença clara de idade entre o casal, que divide carinhos no seu enorme quintal à beira d’água. Quando Elizabeth (Natalie Portman), a atriz de segundo escalão que vai interpretar Gracie em um filme, chega para acompanhar o churrasco que reúne família e vizinhos, nada parece muito fora do normal.
Os diálogos e a trilha sonora, no entanto, aparecem para transformar a história, gradualmente, no pesadelo gélido que Haynes propõe a partir do roteiro da estreante Samy Burch. A música tema é uma adaptação do tema de The Go-Between (Joseph Losey, 1971), composição de Michel Legrand. Em entrevista à revista Sight and Sound, Haynes conta que fez toda a equipe escutar o tema de Michel Legrand durante leituras de roteiro e mesmo durante filmagens, quando o som não estava sendo captado: “Tudo é cronometrado com base na música. O movimento da câmera, os movimentos dos atores. Todos estavam cantarolando, respirando o rítmo. É como um sinal que te deixa em estado de alerta, lendo tudo no quadro.”
Abrindo o filme de forma diametralmente oposta a essa trilha intensa, o primeiro diálogo entre Gracie e Joe é o estranhíssimo “não acho que teremos cachorros-quente o suficiente”, humor frio que toma conta da fala de Julianne Moore durante todo o filme – fala que é acometida por um impedimento que se intensifica quando a personagem, quase sempre tomada por uma tranquilidade excêntrica, finalmente se enraivece.
Foi provavelmente essa abertura que rendeu à crítica a impressão de que o filme era exemplar do que Susan Sontag cunhou como Camp, rótulo que o diretor rejeita. No entanto, como Sontag defende em seu ensaio, Camp também é uma forma de olhar para as coisas, e a artificialidade de May December justifica a classificação: “Todos os objetos Camp têm um elemento importante de artificialidade […] Camp é uma visão de mundo em termos de estilo – um estilo em particular. É o amor pelo exagero, pelo ‘off’, das coisas-serem-o-que-elas-não-são.”
O mais importante na classificação do filme enquanto Camp talvez seja a atenção à interpretação das duas protagonistas. “O gosto pelo Camp é uma espécie de amor, um amor pela natureza humana. Ele saboreia, em vez de julgar, os pequenos triunfos e intensidades desajeitadas do ‘caráter’.” A malícia e o desejo que transparecem nas interpretações de Moore e Portman identificam-se exatamente com essas intensidades desajeitadas do caráter. Por trás da vida ordinária e doméstica de Gracie está um crime terrível, que, por sua vez, é justificado por sua ingenuidade; o final feliz que ela acredita viver esconde uma mentira própria da natureza humana.
Elizabeth, por outro lado, é o falso espelho que se recusa a reconhecer o papel que interpreta naquelas vidas, que ela vê enquanto nada além de histórias. A metáfora do espelho se repete ao decorrer da trama inteira, transformando-se mesmo na estrutura do filme: é como se estivéssemos assistindo a dois filmes sobrepostos, um que propõe a ideia e outro – na imagem, na trilha e nos diálogos – que a critica. Quando as duas mulheres são colocadas em frente a espelhos, a inspiração em Persona (Ingmar Bergman, 1966) fica clara. Colocadas lado a lado, de frente para a câmera, elas se transformam em uma quando Elizabeth – que se revela uma atriz ruim e exagerada em sua imitação obsessiva da outra – decide explorar o corpo de Joe, emulando a forma predatória em que o fez Gracie.
Esse é o ponto de virada da narrativa, que até ali descartava o personagem de Melton como um garoto que não cresceu, fixado nas lagartas que cria dentro de casa – e as quais Gracie despreza. Após a virada sexual na aproximação de Elizabeth, o personagem de Melton parece acordar, vinte anos depois, do sono em que Gracie havia lhe colocado. O humor distanciado – para alguns, Camp – da primeira parte do filme se transforma em um melodrama sério, pesado e triste. A performance de Melton consegue se destacar entre as extraordinárias atrizes veteranas que jogam com seu personagem, que, como as borboletas, finalmente percebe que pode voar para longe dali.
Entre o melodrama de Charles Melton e o Camp de Julianne Moore, é nas “áreas cinzentas” evocadas pela personagem de Natalie Portman que May December se transforma em um clássico contemporâneo. No silêncio do diálogo, a volatilidade da moral e a impenetrabilidade do caráter falam mais alto e fazem sentido das imagens e dos sons que envolvem a trama. O resultado é um filme desconfortável – mas não explosivo – que traz de volta ao cinema a incerteza em um momento em que tudo é absoluto.