A tradicional fórmula narrativa de Moretti toma corpo em um reflexivo trabalho sobre as frustrações da própria vida, ancorado nas sempre sutis especificidades que cada projeto seu carrega
Felipe Palmieri
Como sempre, Moretti interpreta em seu próprio filme um cineasta com problemas pessoais. Como sempre, de alguma forma, o filme que está sendo realizado dentro do filme dialoga com a vida do personagem em questão. Como sempre, é algo maravilhoso. O melhor está por vir não reinventa a roda, mas é mais uma versão primorosa do tipo de cinema que o diretor italiano aperfeiçoou durante toda a carreira.
No entanto, a idade cada vez mais se faz presente na perspectiva cinematográfica de Moretti. Já aos 70, o diretor parece entalhar seu protagonista com os lados positivos e negativos de uma longa experiência de vida, mas com uma recorrência própria de sua visão de mundo: a esperança. Está no título do filme, afinal (ou, pelo menos, na sua tradução).
Essas repetições parecem estar muito presentes na consciência de Nanni Moretti. Incorporam-se em seu novo longa imagens que permeiam vários momentos de sua carreira, conflitos de um mesmo universo, que são repaginados por mudanças sutis de abordagem ou contexto. Deriva-se disso algo em comum com o artesanato do diretor japonês Yasujiro Ozu, que chegou a se descrever em entrevista como um “fabricante de tofu”, que sempre “executa várias pinturas das mesmas rosas”. Apesar de estilos narrativos e formais profundamente diferentes, no âmago de suas obras — sempre reflexivas sobre a condição humana, sobre a vida — existe essa redundância que acaba por os aproximar.
O melhor está por vir reencontra o alter-ego usual de Moretti, Giovanni, no início da produção de um novo longa-metragem. Sua esposa, Paola — também personagem recorrente, interpretada por Margherita Buy — é produtora do filme, uma obra embasada na encenação de um momento específico na história do Partido Comunista Italiano, em que fora necessário decidir entre apoiar manifestantes anti-soviéticos na Hungria ou se alinhar com a URSS. Tudo enquanto um grupo circense húngaro — de postura veementemente contrária à ocupação de 1956 — está alocado em Roma, a convite do próprio partido.
Partindo disso, coloca-se o protagonista em uma jornada de auto-entendimento à lá os mais recentes de Clint Eastwood: de um homem mais velho percebendo seu lugar em um mundo que já não compreende por completo. Os atores mais jovens do filme de Giovanni têm dificuldade em entender o contexto histórico da narrativa, os atores mais velhos enxergam um coração no projeto que é invisível ao cineasta, os meios de distribuição estão mudados e não há mais interesse no tipo de cinema feito pelo diretor. Desentendimentos aparecem em diversas frentes nessa hierarquia da realização audiovisual, que culminam em uma sequência magistral. De forma inconveniente e cômica, Giovanni invade o set de filmagem de outro cineasta — que é também o set do primeiro filme produzido por sua esposa que não é dirigido por ele —, um jovem extremamente apaixonado pelo que está fazendo, até mais do que deveria, e que faz questão de demonstrar tal entusiasmo a todo instante.
Inicialmente, Giovanni o acompanha de longe, sem intervir de maneira muito drástica para além de um comentário ou outro. No entanto, ao se prepararem para filmar a última cena do filme, o alter-ego de Moretti interrompe as gravações e passa a questionar o tipo de imagem sendo produzida. É um filme de ação completamente exagerado, estereotípico ao ponto da paródia, que é criticado por Giovanni ao máximo. Até mais do que o máximo, pois a sequência é duradoura tanto para o espectador quanto dentro da diegese do filme. Tudo aqui é em um tom acima, incitando o lado cômico muito presente na obra do cineasta. A pergunta que surge desta situação é a seguinte: é este o cinema que as pessoas querem ver hoje em dia?
O cineasta out of touch interpretado por Moretti é colocado em sua jornada a partir dessa desconexão profissional, que nos direciona ao verdadeiro coração do filme: a mudança. O melhor está por vir incorpora essa ideia em sua estrutura e sua linguagem caótica, as quais compõem uma colagem heterogênea — mas funcional — de diversas formas de se sentir euforia pela existência. Nessa anarquia formal, muito pautada pela transição abrupta entre gêneros fílmicos diferentes, está a quebra da rotina desse personagem. Uma cisão com tudo que lhe era garantido. Do musical ao melancólico, do cômico ao circense, do político ao pessoal, tudo se conecta na noção de que a vida não pode ser dada como certa. E que, apesar disso tudo, o sol nascerá novamente.