Quero-quero: diário de produção #01

Durante as próximas semanas, a Revista Vertovina irá publicar os diários de produção do curta-metragem “Quero-quero”, dirigido por Mauricio Abbade, que registrará aqui os fantasmas que assombram o processo de produção de um filme. Em relatos pessoais vindos das planícies de terra vermelha dos subúrbios onde se escondem os quero-queros – o interior paulista – o diretor reflete sobre as condições de produção de curtas “independentes” no Brasil hoje.


DIA 02/04

Um diário nunca começa pelo começo. Não estou no primeiro dia de pré-produção, muito menos na primeira semana e menos ainda no primeiro mês. Um filme, como um diário, parece sempre ter um passado do qual a ele pertence apenas como fantasma. 

Começo a escrever hoje, um pouco mais atrasado do que eu deveria. Fazer um filme é um processo difícil, especialmente quando o orçamento é baixo e os processos são independentes – seja lá o que essa palavra significa. 

Sem mais delongas, irei rodar neste semestre um filme na minha cidade natal, Barretos, no interior de São Paulo. Ao mesmo tempo, embarquei nessa ideia maluca de deixar público um diário de produção. Me inspirando em André Novais Oliveira, diretor mineiro, e seu livro “Roteiro e diário de produção de um filme chamado Temporada”. 

A ideia de trazer e apontar a câmera para esses horizontes tem um quê de estrangeirismo. Para as pessoas, a ideia de gravar um filme por aqui tem sido menos bem-recebida do que eu esperava. Por outro lado, passar os dias pré-produzindo tem feito eu me conectar com minha família de uma forma especial. Além de estar passando um grande período na mesma casa que eles – algo que não fazia há mais de 4 anos, a última vez sendo a pandemia de Covid-19 – eles têm me ajudado com a pré-produção.   

No começo desse ano, estive como espectador no Festival de Tiradentes. Uma fala do debate do filme O Tubérculo, de direção do Lucas Camargo de Barros e do Nicolas Thomé Zetune, ficou comigo. O filme, gravado também no interior paulista, fala sobre heranças deixadas: amores, dinossauros e doenças. Não lembro se a frase é de autoria do Lucas ou do Nicolas. Lembro muito menos a frase exata. Mas era algo sobre como os filmes levam a gente para frente

Acredito e quero acreditar nisso. 

Para além da crença, é um desejo. Mesmo que o processo seja muito complexo e turbulento, legais são os filmes que levam as coisas para frente, por mais que às vezes eles andem para trás. 

No mais, por aqui a terra é roxa, mesmo que vermelha, e o céu é azulado. 


DIA 04/04

Hoje fiz reuniões de produção e também de direção de arte. As coisas têm andado, mesmo que a passos lentos. Vou daqui duas semanas ao Rio de Janeiro para a Curta Cinema, festival de curta-metragens carioca. Meu primeiro filme vai passar lá. Além de visitar e negociar locações, tenho planejado essa minha ida. Vai ser a primeira vez que exibo um filme meu fora de São Paulo. 

Nessas últimas semanas de mapeamento de locações, não encontrava um quero-quero sequer em todo lugar que visitava, fosse mato ou campo de futebol. O filme leva esse nome: “Quero-quero”. O personagem principal do filme tem toda uma relação com esse pássaro paulista de olhos vermelhos que habita lugares planos, faz ninho no chão e leva em seu nome a palavra “querer”. Hoje, encontrei alguns em um parque de diversões infantil. Fiquei feliz. Decidi gravar uma cena por ali – penso que algumas decisões têm de ser tomadas assim. 


DIA 05/04

Fazer um filme é uma montanha-russa, especialmente durante a pré-produção. As coisas começam a demorar mais que o esperado, a estancar. E aí o cansaço e o medo começam a dar as caras. 

Preocupado com fechar todas as locações. Agoniado pensando que esse meu curta-metragem se parece demais com um outro anterior. Afobado: querendo gravar logo – mesmo que a ideia seja gravar apenas no fim de maio ou no começo de junho, daqui dois meses.


DIA 06/04

Reservei o dia para descansar, decupar algumas cenas e rever algumas ideias do filme. Tô revendo We are who we are, do Luca Guadagnino. Continua bonito. 


DIA 07/04

Hoje, após fechar algumas locações e uma parte do elenco, lembrei de uma coisa que um amigo meu, o diretor de arte Dicezar Leandro, falou em um bar há algumas semanas atrás: sofre demais quem faz os filmes para si; e sofre menos aquele que lembra dos outros e faz para os outros. 

Não sei muito bem o que eu estou fazendo. Não soube direito nos meus outros filmes e continuo sem saber. Estou apenas tateando uma coisa ou outra. 


Mauricio Abbade é diretor, montador e assistente de direção. Formado em jornalismo e cinema, já dirigiu três curta-metragens: “Atravessaria a cidade toda de bicicleta só pra te ver dançar” (2023), “De curitiba, dá pra se ver o espaço sideral” (2023) e “Gengivites” (2024).


Sinopse do filme “Quero-quero”: No último ano do ensino médio, o que Ribeiro quer mais fazer é contar aquilo que ele não consegue. Assombrado pela terra vermelha e por pássaros que levam em seu nome a palavra “desejo”, o que resta para Ribeiro é colocar fogo em gaiolas de hamster ao lado de seu amigo.

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