Como os aplicativos de produção de vídeos curtos refletem ao inventivo cinema do final do século XIX e como, de forma ou te outra, Rogério Sganzerla previu isso.
Por Lucas Morais
“Nosso cinema involuiu. (…) era preciso que se voltasse a Lumière e Méliès.” — Rogério Sganzerla, 1990.
Um grande cineasta brasileiro da década de 60 dá seu panorama sobre a situação do cinema nacional 30 anos depois, no Jornal de Brasília. Usando o pensamento do diretor como base, um paralelo pode ser feito: talvez tenhamos esse retorno de Lumière e Méliès no nosso bolso.
Por incrível que pareça, os aplicativos de vídeos curtos podem trazer muitas lições para quem se interessa pelo debate sobre “fazer cinema”. O slogan do Tik Tok, por exemplo, é simples e direto: “as tendências começam aqui” — um marco zero, o início, a fundação, a criação — e nisso há um possível paralelo com o cinema: justamente o seu começo.
Dou alguns exemplos para aprofundarmo-nos: La Sortie de l’usine Lumière à Lyon (1895), produzido pelos irmãos Lumière, mostra, por 45 segundos (ou 3 Stories do Instagram, se preferir) a saída de funcionários de uma fábrica. Dos mesmos Lumière e no mesmo ano, há também L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat (1895) com 42 segundos e, também, com imagens seguindo o que descreve o próprio título: simplesmente a chegada de um trem.
Contemporâneos dos Lumière, ainda adiciono mais dois filmes para a discussão: The Execution of Mary, Queen of Scots (Clark, 1895) e Escamotage d’une dame au théâtre Robert Houdin (Méliès, um ano depois, 1896). Com 17 e 70 segundos de duração, respectivamente, cito os dois juntos por utilizarem um recurso parecido de edição: o efeito prático de “desaparecimento” ou “transformação” usando cortes.
Mais de cem anos depois, basicamente os mesmos recursos se tornam base dos vídeos no aplicativo: vídeos curtos, muitas vezes mudos — quando há necessidade de texto, é escrito na tela, tal qual o uso do intertítulo do clássico cinema mudo — com alguma música de acompanhamento e com basicamente o mesmo recurso de edição dos filmes de Méliès e Clark. A semelhança se torna ainda mais interessante se considerarmos que há pouquíssimo conhecimento de cinema antigo por parte do público jovem atual, o que transforma esses recursos em algo como “instintos” de filmagem.
Com a evolução dos smartphones, a qualidade das câmeras nos aparelhos é impressionante. Não é exagero dizer que um celular de última geração possui mais qualidade de filmagem do que uma filmadora profissional de alguns anos atrás. Esse acesso, no entanto, superestima os equipamentos de fotografia e/ou filmagem.
A qualidade da imagem (por mais que impressionante para a época) não era o foco de nenhum dos filmes citados, o que importava era o ato de filmar e de exibir. Anos depois, já na década de 60, a câmera Super-8 foi criada pela Kodak como uma câmera de uso amador, porém frequentemente citada como o primeiro acesso de grandes nomes do cinema ao ato de filmar — inclusive, o próprio Sganzerla (Folha de S. Paulo, 2010).
É inegável que a estimulação ao ato de filmar no aplicativo relativiza as diversas limitações de sua filmagem, que se tornam estilo. Sganzerla diria em 1970: escolho o subdesenvolvimento não só como condição, mas também como escolha do filme. Para a Folha em 1995, Sganzerla define que “o cinema traz um sentido todo novo, embora concretize coisas antigas”. Ora, é exatamente isso que está acontecendo hoje com o que os Lumière e Méliès fizeram um século antes da declaração de Sganzerla.
E afinal, por que exigimos tanta qualidade, tanta produção e tanto desenvolvimento? Assistimos à crise de produção de cinema no país pela alta dependência da captação de recursos para realização enquanto portamos câmeras de 4K nos bolsos. O discurso burocrata já se instalou em quem estuda audiovisual: não se grava sem a melhor câmera, não se fala sem o melhor microfone. Sganzerla, na Tribuna da Imprensa (1987), disparou contra a burocracia e disse que “uma boa saída é o home vídeo”. Trazendo o conceito de home vídeo para hoje , os aplicativos, de alguma forma até não proposital, estimulam a filmagem de uma nova geração e apresentam os recursos básicos de filmar, editar, roteirizar para então exibir de forma mais “democrática”.
Não digo que os vídeos de aplicativo sejam ou queiram ser cinema — seja lá o que for cinema –, mas não é exatamente isso que os Lumière também estavam fazendo? Uma vez, declarou Sganzerla (1990): “cinema não se aprende na escola”. Justamente por isso, enquanto não tirarmos nossa cabeça das teorias de cinema e do filmar com altos investimentos hollywoodianos, não conseguiremos fazer cinema no Brasil.
Se os aplicativos nos levam de volta para o cinema de 1895, estamos além da origem de todas essas teorias — estamos na prática. Estamos no pré-cinema. Os experimentos de 1895 não deixam de ser vídeos curtos com os básicos de filmagem e edição — a mesma revolução artística da criação do cinema se repete na revolução dos aplicativos de criação de vídeo. A primeira vez como tragédia e a segunda como farsa? Talvez! Mas é como se os aplicativos estivessem autorizando o ato de filmar sem carregar uma seriedade inventada para tal: a famosa “asnocracia” de Sganzerla. Se nós não retornamos a Lumière e Méliès, eles foram retornados para nós de outra forma.