“Pixote, a lei do mais fraco” e as crianças marginalizadas no Brasil

No aniversário de 40 anos do filme, permanecem contemporâneas as discussões que ele levanta acerca do descaso governamental frente à juventude marginalizada brasileira.

Por Juliana Hipólito

Em 18 de setembro de 2021 são comemorados 40 anos do filme Pixote, a lei do mais fraco, dirigido pelo cineasta argentino-brasileiro Hector Babenco e protagonizado por Fernando Ramos da Silva. O longa, pode ser dividido em duas partes: a primeira narra a vida de meninos que vivem em um reformatório, enquanto na segunda Pixote e alguns amigos escapam e passam a habitar ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro, adeptos de roubos, homicídios e da cafetinagem.

O filme é inspirado no livro “Infância dos mortos”, escrito por José Louzeiro, que é, por sua vez, baseado no evento denominado “Operação Camanducaia”, que ocorreu em 1974. Trata-se de um episódio no qual a polícia militar paulistana juntou dezenas de crianças em situação de rua e as levou ao Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC) de São Paulo, onde foram agrupadas num ônibus e levadas para um local desconhecido. O resultado foi a morte dessas crianças (flageladas por agressões, atacadas por cães ou após pularem de um precipício próximo), com exceção de alguns, que sobreviveram e retornaram para São Paulo.

Se fora do país “Pixote” foi bem sucedido, sendo eleito pela crítica de Nova York e Los Angeles como o melhor filme estrangeiro de 1981 e levando uma indicação ao Globo de Ouro de melhor filme internacional, não se pode dizer o mesmo no âmbito nacional. Em primeiro lugar, pois o próprio Fernando, que interpretava o menino de dez anos que leva o título do filme, não conseguiu se destacar o suficiente para seguir carreira na atuação, por ser semi analfabeto e de origem periférica. Vivendo às margens da sociedade, acaba levando oito tiros à queima-roupa provenientes de agentes do Estado.

Em outras palavras, a conscientização acerca da problemática de crianças e adolescentes marginalizados numa sociedade em que não são bem-vindos não conseguiu transgredir o longa-metragem, que embora choque e tenha suas discussões reverberadas em alguns setores e movimentos sociais, não obteve respaldo de políticas públicas eficientes. Segundo um relatório da Fundação Abrinq, havia no Brasil em 2018 mais de 20 milhões de adolescentes até 14 anos vivendo na linha da pobreza. Em 2017, 11,7 mil jovens de até 19 anos foram assassinados, sendo que em 1.200 casos a autoria foi, oficialmente, da própria polícia.

É importante mencionar que o longa retrata não só o descaso estatal frente a uma juventude que se encontra em condições de vulnerabilidade social e econômica, como também a execução de uma política higienista a mando do próprio governo. Em determinado momento do filme, Fumaça, um jovem amigo de Pixote, morre de hemorragia interna devido às torturas que sofreu de policiais por supostamente ter cometido um assassinato. Momentos antes, é mostrada uma cena em que dois colegas do protagonista, que habitam o mesmo reformatório, são mortos à queima-roupa. Isso tudo se dá através de um acordo entre o dono da instituição que abriga (e maltrata) as crianças e chefes de Estado, que perversamente aplicam uma medida de cunho eugenista, pois essas crianças e adolescentes são vistos como prejuízo para a sociedade, culminando em seu extermínio orquestrado.

A segunda parte do longa, após um estopim no qual muitas das crianças e adolescentes fogem do reformatório e se aventuram pelas ruas de São Paulo, foca na descoberta do mundo para além dos limites morais da instituição na qual estavam abrigadas. Há também uma tentativa de amadurecimento dos jovens, que se veem obrigados a lutar pela própria vida para não morrerem de fome ou sujeitos às violências de um Estado que não os quer vivos, enquanto se encontram com os hormônios à flor da pele, sendo outra pauta do filme a descoberta da sexualidade. Nessa metade de “Pixote”, Babenco se utilizou de um intenso realismo, visto que os atores trabalhavam com a ausência de diálogos pré-estabelecidos e uso de pouquíssimos figurantes, como na cena dos assaltos no Viaduto do Chá, que quase os fez serem agredidos por transeuntes, que confundiam a cena com uma situação de crime real.

Embora tenha sido realizado há 40 anos sob um período de incipiente redemocratização, “Pixote, a lei do mais fraco”, segue capaz de abrir debates sobre marginalização e criminalidade de crianças e adolescentes em situação de rua. Mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, que teoricamente deveriam assegurar direitos e significar a instauração de uma sociedade mais justa e menos desigual para a juventude brasileira, seguimos vivendo num território onde pessoas marginalizadas são criminalizadas, objetificadas, julgadas, agredidas e mortas. É um filme atemporal que, por meio do realismo da narrativa e da história de fundo sobre a qual foi alicerçado, toca e choca. Embora na cena final Pixote adote uma expressão esperançosa em relação ao seu futuro, não se pode afirmar que seja esse o destino reservado a todos os jovens que vivem às margens da sociedade, sujeitos a uma política higienista que retira todos os seus direitos.

Referências

Pixote, a lei do mais fraco. Hector Babenco, 1981. 128 min. Acesso em 9 set. 2021.

‘Pixote, um filme que não acaba’: longa de Hector Babenco segue atual. TAB UOL. Acesso em 13 set. 2021.

Pixote, a lei do mais fraco 37 anos depois. José Sérgio Machado Junior. Revista Socioeducação. Acesso em 14 set. 2021.