Como a cineasta tcheca desafiou a censura e fez um cinema político e feminista através do experimentalismo
Por Carolina Azevedo
Věra Chytilová foi uma autora imprevisível, cujo experimentalismo incomodou fortemente os estúdios de gravação e censores da Tchecoslováquia da década de 1960. Dando início à sua carreira como a única mulher de sua sala no Instituto de Cinema Barrandov, a cineasta sempre foi contra as convenções impostas sobre ela pelos homens que a cercavam, professores que viam seu experimentalismo com desdém e pelo aparato de censura do país, naquele momento sob repressão da União Soviética.
Mesmo com todos os obstáculos, Chytilová foi um dos principais nomes da Nouvelle Vague Tcheca e uma das únicas mulheres a integrar o movimento. Apesar de ser caracterizado por representações experimentais de temas que incomodavam a censura comunista, o grupo de cineastas que começava a fazer sucesso naquele momento sentia certa aversão aos filmes de Chytilová, considerando-os experimentais demais e incompreensíveis aos olhos do público.
A cineasta prezava por atuações naturais, com artistas de pouca experiência e muito improviso, até porque suas filmagens muito diferiam dos seus scripts originais, algo que fez com que se indispusesse com parceiros de trabalho, mas também que fugisse da censura com eficácia. Durante toda sua carreira, apostou na estilização radical como forma de dar voz aos seus pensamentos, algo que rendeu-lhe brigas em todas as etapas de produção de vários de seus filmes, até porque na década de 1960 a produção e exibição na Tchecoslováquia não era um trabalho simples. Os filmes deveriam ser aprovados a cada etapa de produção — de roteiro a exibição — por órgãos responsáveis pela censura, como o Estúdio de Cinema Barrandov (FSB) e outras instituições do Estado.
Apesar de tudo isso, Chytilová teve o poder de fazer uma arte contestadora através de um cinema que prezava pelo furtivo. Explorou sobretudo o problema da mulher em uma sociedade totalitária — que pouco diferia do que passavam as mulheres naquele momento no Ocidente. Mesmo com o constante envolvimento de mulheres no mundo do cinema e audiovisual desde sua concepção, o espaço para artistas mulheres sempre foi muito limitado, sobretudo para falar de problemas da experiência feminina. Věra Chytilová foi uma das poucas que tiveram sucesso fazendo isso.
O audiovisual não seria o mesmo sem ela, que teve o poder de dar voz e inspirar mulheres a lutar contra a realidade opressora através da natureza experimental e emancipadora do cinema. Em seu primeiro longa-metragem, Something Different (1963), a cineasta já mostrava um pouco daquilo que viria a ser sua obra.
Narrando simultaneamente a história da famosa esportista Bosakova e da dona de casa Vera, Chytilová explora assuntos como intimidade, aborto e a clássica decisão entre família e trabalho. O filme trabalha, intercalando cenas reais e ensaiadas, a comparação entre diferentes mulheres e a pressão feminina por atender às expectativas da sociedade, algo que levou a muita discussão e negociação entre a artista e os comitês de censura do Estado socialista.
Já de início, Chytilová surpreendeu pelo experimentalismo e pelo uso da edição como forma de ilustrar ideias. Aos moldes da Montagem Dialética de Eisenstein, a cineasta utilizou da imagem como forma de criar paralelos entre as vidas das duas mulheres, fortalecendo seus argumentos e instigando o questionamento por parte da sociedade a respeito das questões tratadas na obra.
Outra obra em que a artista utiliza da combinação entre feminismo e experimentalismo para tentar fugir da censura foi Fruit of Paradise (1970), uma releitura da história de Adão e Eva que se transforma em uma alegoria a respeito da situação da mulher moderna em relação aos homens que a cercam.
O filme toma como ponto de partida exatamente a gênese da humanidade e por conseguinte do machismo. Resgatando a história que molda as sociedades ocidentais, Chytilová chama atenção para o fato de que, segundo o conto, foi a mulher quem trouxe toda a desgraça e o pecado à humanidade, utilizando dessa ideia para tratar da perda de inocência, do papel da mulher e dos recentes eventos que tomavam conta da Tchecoslováquia em 1968: a Primavera de Praga e o tema da traição.
Construindo alegoria em cima de alegoria, ela cria um filme que, apesar de ser de difícil entendimento, cumpre com seu papel de contestar tudo o que a cerca, passando despercebido pelo comitê de censura. O que parece um conto absolutamente aleatório é na verdade um chamado da juventude pelo futuro daquele país e das mulheres que nele sofriam, assim como fez seu filme mais famoso, Daisies (1967).
Visto no momento de seu lançamento pelos estúdios de filmagem da Tchecoslováquia como um experimentalismo extremo a ser evitado pelos cineastas da Nouvelle Vague Tcheca, Daisies é hoje um dos principais filmes daquilo que pode ser chamado de cinema feminista.
O uso de cortes, cores, montagens, colagens e imagens psicodélicas de modo a criar alegorias a respeito da política local e da situação da mulher renderam ao departamento de ideologia do Estado a constatação: “linguagem metafórica e alegorias abrem espaço para interpretações ambíguas, uma obra de arte deve falar por si mesma. Se notas explicativas são necessárias ou instruções para o entendimento envolvem discussões é porque há algo faltando”, fazendo com que o filme fosse banido.
Mas é exatamente o experimentalismo radical que faz com que o filme seja hoje um dos maiores da década. Ele representa uma revolução na forma e conteúdo, um uso impecável de todos os aspectos do fazer cinematográfico — cor, espaço, perspectiva, narrativa, som, atuação e edição — como forma de transmitir uma ideia política com maestria. Chytilová critica os maneirismos burgueses, as morais do patriarcado, as regras de uma nação onde não há liberdade e a constante guerra ideológica que exclui as lutas das minorias para utilizar da força destrutiva contra inimigos invisíveis. Tudo isso acompanha ironia e humor, cenários surrealistas e imagens de beleza quase incompreensível para as telas de cinema da década de 1960.
O absurdo foi o método com que a cineasta viu sua crítica tomando forma, e foi nessa mistura entre experimentalismo em forma e conteúdo que o feminismo de Chytilová ganhou força, abrindo caminho para mulheres se aventurarem no mundo do cinema e dizerem o que têm a dizer sobre o mundo sem serem repreendidas.
Ela foi a cineasta que teve a coragem de rebelar contra o sistema no qual estava inserida e defender sua arte até o último momento, revolucionando a indústria do cinema para mulheres no mundo todo. Věra Chytilová ajudou na criação de um cinema feminino e feminista, passando por críticas, censura e preconceito, de modo a abrir caminho para o reconhecimento do cinema do leste-europeu e sobretudo de mulheres no cinema.
Referências:
- Lukáš Skupa (2018): Perfectly unpredictable: early work of Věra Chytilová in the light of censorship and production reports, Studies in Eastern European Cinema, DOI: 10.1080/2040350X.2018.1469202
- For Country, For Women: Women Directors in the Czech Republic, Hungary, Poland, and Romania, Kathleen McEneaney Grand Valley State University. In Cinesthesia Vol. 1 Issue 1 (4–1–2013)
- The feminist style in Czechoslovak cinema: the feminine imprint in the films of Věra Chytilová and Ester Krumbachová, Petra Hanáková. In The politics of gender culture under state socialism: an expropriated voice