1930: E se sonhássemos o cinema?

Choques entre os filmes de Germaine Dulac e Luis Buñuel, ambos fascinados pela potência excêntrica do inconsciente humano, nos levam a enxergar o cinema surrealista de outra forma

Por Paola Orlovas, para a Revista Vertovina

Falar do surrealismo dentro da sétima arte é tentar compreender o que, nas primeiras décadas do século XX, foi definido como “cinema”. Afinal, o que faz de um conjunto de registros um filme? Alguns elementos, como estrutura, linearidade e realismo, podem vir à mente, mas fazem parte daquilo que foi subvertido pelos realizadores surrealistas da época.

O cinema produzido pelos surrealistas tocava o inconsciente enquanto era poético, sonhado, desconstruído, artístico, e acima de tudo, “escrito para os olhos’’, segundo o multiartista Jean Cocteau (1889–1963). Não havia preocupação por parte dos diretores em criar algo lógico, linear ou que remetesse às produções de Hollywood, pois buscavam conceber filmes críticos e chocantes, carregados de fantasia, simbolismo e críticas ao que consideravam imoral na sociedade burguesa da época.

Surgindo dentro do período entreguerras, o surrealismo, assim como o dadaísmo, o expressionismo e o construtivismo, buscou romper com as normas vigentes na esfera artística da época ao produzir um cinema diferente, a partir de ideais singulares, valorizando o simbólico, abstrato, e principalmente, o inconsciente. Nem sempre os filmes eram compreendidos, mas o objetivo nunca foi esse. Mesmo com vaias e críticas, os diretores surrealistas buscavam levantar questões, e isso faziam bem.

Apesar de ter sido um movimento experimental com marcas irreversíveis na história das telonas, o surrealismo cinematográfico não emplacou tantos nomes quanto o seu equivalente no cavalete. Quando tratamos dele no cinema, lembramos de duas figuras essenciais: Germaine Dulac (1882–1942) e Luis Buñuel (1900–1983).

Enxergado por muitos como a maior face do surrealismo dentro do cinema, Luis Buñuel, grande amigo de Salvador Dalí (1904–1989), foi um espanhol escandaloso, que, ao envelhecer, se virou contra a criação jesuítica que recebeu para retratar os dogmas da sociedade, sempre dando espaço em suas obras para a hipersexualização das mulheres .

Seu primeiro filme, intitulado Um Cão Andaluz, lançado em 1929 e escrito ao lado de Dalí, com base em sonhos da dupla, foi notável em diversos sentidos. De baixo orçamento, sem significado claro, e por vezes perturbador, ele teria sido essencial para estrear o movimento na sétima arte.

Tratando de tabus da época, como o desejo e o conservadorismo religioso, o filme começa com um prólogo, em que o diretor segura uma navalha, e depois aparece cortando o olho de uma mulher. A cena, que é a mais famosa da história do movimento, pode ser lida como uma alusão à ruptura com a forma dos espectadores enxergarem filmes até então.

Un chien andalou (Um Cão Andaluz), Luis Buñuel (1929)

São dezesseis minutos de pura confusão e simbolismo, tal qual um sonho. Dentro do curta, marcante por sua originalidade, montagem seca e fuga do espaço-tempo, acompanhamos histórias de diferentes personagens que não estão ali para contar uma história linear e específica, mas para criar uma representação de diferentes problemáticas.

Problemáticas essas (como o sexual e o inconsciente) que foram abordadas em um filme lançado pouco tempo antes, por uma mulher francesa chamada Germaine Dulac. Levando o nome de A Concha e o Clérigo, com inspiração no texto do problemático Antonin Artaud (1896–1948) e lançado em 1928, o filme pode ser considerado o primeiro filme surrealista de facto.

Altamente experimental e sem enredo definido, ele trata, de forma clara e concisa, do bloqueio do desejo de um jovem clérigo por uma mulher casada com um general, feito por figuras de autoridade: um sacerdote e um militar, que representam a repressão psicológica da libido humana.

Dulac era uma diretora, produtora e teórica do cinema francês que, antes de se aventurar no surrealismo, produziu e roteirizou outros filmes e “estudos cinematográficos” importantes, como O Sorriso de Madame Beudet (1922), uma obra impressionista (e feminista) que tratava de uma dona de casa extremamente infeliz dentro de seu casamento burguês e conformante.

“Sonhos…” La Souriante Madame Beudet (O Sorriso de Madame Beudet), Germaine Dulac (1922)

A Concha e o Clérigo, além de trazer as temáticas de sexualidade e desejo, já muito impactantes para o cinema e o público da época, é capaz de chocar ainda mais o espectador, com sua montagem inovadora, cheia de sobreposições, imagens alteradas e enquadramentos artísticos.

La Coquille et le Clergyman (A Concha e o Clérigo), Germaine Dulac (1928)

É importante lembrar da filmografia de Germaine Dulac ao tratar do cinema surrealista porque, além de pouco conhecida, ela faz um contraponto interessante à sexualização das mulheres feita por Luis Buñuel, seu contemporâneo.

Enquanto Dulac encabeçou filmes pensando em novas formas de experimentar e na subjetividade do observador, levando em conta sua teoria dos diferentes tipos de movimento — externo, do artista, interno, do cinema e externo, do espectador — é possível enxergar em Buñuel uma vontade enorme de chocar, e apenas chocar, mesmo que dentro de certa experimentação.

O paralelo entre Um Cão Andaluz e A Concha e o Clérigo também destaca a diferença entre as abordagens dos dois diretores quando se trata do desejo e da repressão, presentes em ambos. Dulac trata a sexualidade masculina exacerbada de seus personagens como algo tóxico e reprimível, o que inclusive fez com que a diretora fosse julgada pelos surrealistas.

É no próximo filme de Buñuel, A Idade do Ouro (1930), visto como continuação espiritual de Um Cão Andaluz, que podemos notar mais do seu enfoque na mulher como objeto, quando é contada a história de um homem burguês agressivo e venenoso que deseja uma mulher incessantemente, que também é atraída pelo caráter perverso do personagem.

O filme, que se passa durante diversas eras da sociedade ocidental, é uma crítica ao mundo burguês e todos os seus dogmas. Embora algumas cenas emblemáticas (como a de Jesus como Duque de Blangis e a de uma empregada doméstica sofrendo um acidente fatal) impressionem — fazendo inclusive com que o filme não durasse mais do que seis dias em cartaz e fosse censurado durante 50 anos pelo governo francês –, outras fazem com que ele perca mérito.

A crítica à burguesia peçonhenta e seus dogmas parece forte por si só, e o longa, que conta com uma abertura fascinante sobre escorpiões (criaturas competitivas, traiçoeiras, venenosas, assim como os burgueses) se sustentaria sem sua cena mais famosa, que consiste da personagem principal sugando os dedos do pé de uma estátua.

L’âge d’or (A Idade do Ouro), Luis Buñuel (1930)

Eventualmente as peças mais irônicas, mesmo que disruptivas e inovadoras em muitos sentidos, podem se perder em críticas vazias e delírios pessoais de seus autores, culminando em uma ironia progressiva, em que o crítico é criticado, e com razão. Devemos adquirir a capacidade de olhar para além de nomes e buscar por ações e trabalhos que também fizeram a diferença, mesmo que não sejam notados de primeira.

Referências:

A Concha e o Clérigo: aproximações e divergências entre Antonin Artaud e o Surrealismo, de Renata de Pina Costa, para a revista Anagrama

The First Feminist Film, de Maria Popova, para o Brain Pickings

A Imagem no Cinema como choque segundo Walter Benjamin, de Oberdan Quintino, dissertação de Mestrado na UNIFESP

O surrealismo nas artes visuais e no cinema, de Danilo Satou e Fernando Netto, para o blog do CCSP

Trilogia Órfica: um estudo sobre o cinema poético de Jean Cocteau, dissertação de mestrado de Isabella Brandão Mendes Martins, UFJF

Germaine Dulac: o marco zero do surrealismo no cinema, de Donny Correia para o jornal O Estado de S. Paulo