Novo filme de Jonathan Glazer se atenta em evidenciar a violência sem mostrá-la
Pedro A. Vidal
Nós, que parecemos acreditar que tudo isso pertence a um só tempo, a um só país… que não pensamos em olhar à nossa volta, e que não escutamos o grito incessante.
Jean Cayrol
Ao escrever sobre um filme que trata do Holocausto, é incontornável falar do conceito de abjeção de Jacques Rivette. Em texto para a Cahiers du Cinéma, o crítico condenou o filme Kapò, de Gillo Pontecorvo, pela excessividade de realismo psicológico estético no contexto de um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade. Na tentativa de reconstituição tradicional de um espetáculo, que praticamente remete à pornografia, o filme adentra um processo de tornar aquilo uma realidade factual, consequentemente tornando-a suportável.
Na única descrição de cenas do filme, Rivette escreve que em um dos seus travellings técnico-psicológicos bem enquadrados, uma das personagens se joga em direção ao arame farpado eletrificado. São nesses termos que nasce o conceito de abjeção de Rivette. Se o travelling passa a ser uma questão de moral, pois, por convenção, carrega uma carga emocional que é passada para o assunto fotografado, The Zone of Interest, de Jonathan Glazer, é um filme sem travellings.
O filme consiste em um processo de dissecação das estruturas da barbárie de forma austera e ponderada. O realizador se propõe a responder a questão proposta por Rivette: como é possível filmar uma coisa tão misteriosa quanto a morte sem se sentir um impostor? A ela, Glazer responde que simplesmente não se filma, se busca por um viés diferente.
Glazer não se abstem de forma apolítica, mas analisa minuciosamente, a uma distância, o cerne da arquitetura da barbárie em que residiu o Holocausto. A distância focal reduzida faz com que a imagem praticamente descole do quadro. Não existem primeiros planos, nem ao menos aproximados. Glazer recusa essa noção de psicologia, amplamente utilizada em filmes que apelam para a dualização dicotômica, como tantos filmes, O Menino do Pijama Listrado e até mesmo A Lista de Schindler, que acabam produzindo personagens caricatos em uma espetacularização histórica.
No lugar da psicologização, o que existe é uma repetição nauseante do cotidiano, muito semelhante aos movimentos corpóreos hipnotizantes de Jeanne Dielman. Mas, em The Zone of Interest, a hipnose reside em maior parte na tensão doméstica do espaço, nessa abdução sonora e visual dos ambientes. Pois enquanto a cultura do outro é usurpada (o roubo de peças domésticas dos judeus, como as saias e cortinas), pressentimos um apocalipse do outro lado da janela.
A potencialização da locação também é determinante na inquietação do espaço – Glazer filmou todas as sequências na Alemanha e na Polônia. As longas tomadas com a câmera estática e iluminação opaca traduzem um estudo da violência da arquitetura nazista. A mansão de campo de estética clássica, cercada de jardins floridos, com o muro colado nos campos de extermínio, reflete o sonho margarina vivido pela família do tenente Rudolf Höss. Que, em meio às prospecções de um futuro brilhante construído com base na riqueza roubada das vítimas do Holocausto, desfruta do “espetáculo” de milhões de judeus de toda Europa morrendo no batente da sua porta.
Adolf Eichmann acordava todos os dias pela manhã, batia o ponto em Auschwitz-Birkenau e ia para o trabalho, crente de que conduzia um projeto de revitalização moral da humanidade, na mais perfeita ambição profissional e burocrática. The Zone of Interest segue os moldes da filosofia de Hannah Arendt, isso é claro, mas o que está na pele da linguagem é essa instalação de uma arquitetura da violência pela imagem e pelo som. O mal é pensado no filme como político e histórico, não por uma natureza ontológica ou psicológica característica da abjeção de Rivette. A trivialização da violência corresponde, para Arendt, ao esvaziamento do pensamento, onde a banalidade do mal se instala. Em The Zone of Interest, ela se instala no esvazio do quadro.
Por essa lógica, inclusive, nasce um dos pouquíssimos méritos de Oppenheimer, de não mostrar a explosão da bomba atômica em Hiroshima. Mostrar sem mostrar, nisso talvez resida uma nova tendência muito forte do cinema contemporâneo. Fica a questão de qual será o cineasta que a exercerá com mais êxito.
Pelo distanciamento da câmera para com os personagens nos ângulos abertos, nas composições planas, sem primeiros planos ou closeups, na iluminação opaca, na falta de excessos; até mesmo no som, que falta música, mas que por sua vez tem os efeitos sonoros que, amplificados, constroem essa arquitetura. O som é tão anormal que passa a ser mais violento que a própria imagem: em um plano distanciado do tenente, que enquadra somente seu rosto inexpressivo diante do céu, são percebidos gritos de horror, mas nunca filmados. Ou seja, o que é mais importante no quadro é o que está fora dele, é uma lógica que o filme segue que acaba se aproximando até mesmo do gênero do terror.
Nas sequências negativadas, que remetem à uma dimensão fantástica já usada por Glazer em Under The Skin, o viés formal de Zone of Interest torna-se assombroso e se assemelha até mesmo a um filme de horror — que corrige alguns dos principais erros de signo que condenaram Midsommar. O pai lê pras crianças a história de Gretel e Hansel, enquanto numa atmosfera lynchiana uma garota se esgueira pelos bosques. Essa segunda dimensão de Zone of Interest é contrastada pelo campo claro e aberto habitual, como se em todo o substrato da barbárie residisse uma profundidade horrorizada — do plano estático da rosa passa para um fade em vermelho, como em Le Bonheur, a romantização bucólica transgredida pelo sangue pictórico.
Há quem considere o dispositivo de distanciamento de The Zone of Interest como uma trucagem inteligente, ao invés de uma ferramenta dialética de exploração e dissecação histórica. A questão é que o dispositivo de Glazer não é equiparável às intenções do cinema de fluxo e nem procura por um mistério desconhecido debaixo dos panos. The Zone of Interest também não é o tipo de filme que deve ser cobrado de uma paixão pelo aparato, essa é uma questão do cinema contemporâneo, mas são outros os tipos de filme nos quais isso deveria ser cobrado. O que há é o oposto de tornar a imagem desconfortável, não por artifícios técnicos e imagéticos, mas pela sugestão, que insere o filme em um processo da não espetacularização da violência. Não há mistério, o que há é a realidade brutal que só se manifesta pra fora do quadro.
O que é conveniente de crítica é que a elipse final do filme deixa dúvidas: enquanto segue sua rotina burocrática, o tenente nazista tem uma iluminação do futuro e vislumbra uma rotina de limpeza no museu das vítimas do campo de concentração de Auschwitz. O que Glazer propõe é uma crítica? Uma repetição da banalidade do mal que se manifesta em uma lógica museológica industrial onde já se foi testemunhado um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade? É a invisibilidade de quem cuida das memórias do passado? É uma consequência irônica do trabalho burocrático do nazismo que resultou em uma faxina de rotina do museu? Nesse sentido, o filme adentra uma problematização de não saber direito o quanto mostrar do que não quer mostrar, semelhante até mesmo ao final de The Power of the Dog. Talvez dizer tudo isso seja analisar demais o filme, mas a intenção de Glazer não é clara e nesse contexto é válida de justificação.
Sobre Nuit et Brouillard, Rivette entende que sua força esteja não no fato bruto presente na documentação da imagem, mas sim na montagem, na dialética em que esse processo de tornar factual é encadeado e oferecido ao olhar. Enquanto a máquina de matar do Estado e a institucionalização do mal é evidenciada em Nuit et Brouillard pela montagem, em The Zone of Interest ela o é pelo grito incessante que não é mostrado, mas sim ouvido.