Por Davi Krasilchik*
A relação entre o homem e o meio que o permeia parece se estabelecer como um dos grandes cernes das discussões artísticas. Historicamente institucionalizadas como eficientes ferramentas de intermédio entre a raça humana e o mundo, a arte tem sua origem justificada pela antropologia como um desenvolvimento paralelo à religião, nos guiando por meio de intermináveis questionamentos através de símbolos cristalizados. É o que afirma, pelo menos, o pensador Ernst Fischer, que elege o fazer do artista como mecanismo primordial para a manutenção do ímpeto compartilhado pela humanidade de jamais cessar o investimento em uma autocompreensão e ligação para com o universo.
Nesse processo, não são poucas as estruturas que acabam se tornando tradição na construção narrativa, solidificando convenções que retiram, gradativamente, o encantamento que tanto impulsionou o Cinema em suas raízes. Reconhecendo a universalidade dos fatores internos que atuam como combustível, entretanto, não são poucos os longas que ainda priorizam uma simplificação da Sétima Arte como linguagem de imagem e som, renegando as convenções ditadas por roteiristas como Robert McKee e Syd Field para condicionar experiências transcendentais.
Embora ainda reconheçam a dimensão física do espaço, elegendo o urbano como campo de tradução das extensões sensoriais de seu protagonista, são bastante abstratas as escolhas feitas pelo longa “Na Cidade De Silvia”, obra que escolhe a simplicidade de planos longos e contemplativos para mirar magistralmente na complexidade do interior humano. Construindo um universo colorido, sonoro e povoado por rostos em constante redefinição, tem-se assim uma obra que povoa a sua “mitologia” justamente pelos laços metafóricos que unificam atores e paisagens.
Definido por circunstâncias, o filme acompanha o perambular de um jovem de olhos azuis, interpretado por Xavier Lafitte, que trafega por uma cidade permeada por sons e transeuntes, caracterizada por seus mínimos detalhes em detrimento de grandes e clássicos planos de apresentação de ambientes. Misturando-se a esse microcosmo dentro do qual se entrelaçam aspectos realistas e características que apenas a Sétima Arte seria capaz de construir, ele investe na procura de espectros, acompanhando os passos de uma figura que julga pertencer ao seu passado.
Guiando um protagonista destituído de nomes, é a partir dessa situação que o diretor José Luis Guerin opta pela materialização do espaço externo como ferramenta de construção do interior de seu representante. Para tal, constrói sequências que se complementam ao totalizar as ruas de um singelo bairro espanhol, cujas esquinas vazias revezam o espaço com registros de ações banais como o varrer do chão e o transitar de um vagão de bonde.
Sejam elas menos ou mais preenchidas por elementos de nosso cotidiano, tais segmentos não apenas incorporam a capacidade fílmica de recriação da realidade — que alavanca o senso de imersão e, consequentemente, a universalidade construída pela obra -, como também atuam como representações gráficas dos anseios da personagem central.
Ávido pelo reencontro com Silvia (Pilar López de Ayala), um espectro de uma vida antiga que parece se confundir entre as alamedas e as avenidas desse espaço urbano, é justamente o olhar de nosso protagonista que atua como fio condutor de toda a experiência, intermediando a relação entre espectador e imagem. Tal aspecto se encontra muito bem consolidado na bela sequência ambientada em um restaurante, onde segmentos mínimos que seriam tradicionalmente ignorados ganham os holofotes na tela.
Movido pela curiosidade, é tocante a maneira como a visão de Xavier acaba interceptando coincidências e trivialidades nas mesas ao redor da sua própria. Sejam conversas jogadas fora, mãos que se entrelaçam, ou mesmo silêncios, protagonizados por semblantes separados por objetos dispostos pelas mesas do café.
Gestos, olhares, falas e posturas que se perdem no meio, se misturando à natureza que os permeia e os englobando como novos aspectos de sua constituição. Esse fator também se expressa na inteligente divisão do longa em “dias”, capítulos que cronometram a jornada de nossa figura universal. Semelhantes, os inúmeros paralelismos e rimas visuais tecidas entre essas passagens sedimentam a manutenção de angústias e necessidades que jamais deixaremos de carregar conosco.
Impressas em nossa trajetória, tal como os raios de luz interrompidos pelas passagens aleatórias de veículos noturnos que escapam pelos feixes de nossas janelas, é igualmente encantadora a sequência final da produção, que intercala planos de diferentes passageiros que persistem no aguardo em uma estação de metrô. Oscilando entre planos abertos e enquadramentos mais fechados, são ressaltadas as diferenças físicas, e superficiais entre aqueles ali presentes, mas sem que se perda a verdadeira intenção por trás dessas construções: a generalização do senso de procura, buscas subjetivas que nos permitem harmonizar nossa relação com o espaço que ocupamos.
Essa atmosfera é ainda registrada pela magistral construção sonora do filme, que se mantém durante um bom tempo na emulação de um perfil realista para, em seus trechos finais, assumir uma maior abstração e atribuir a manutenção de certos sons — não produzidos no campo diegético em alguns casos — ao estado psicológico da personagem principal. Tem-se assim mais uma evidência da dificuldade de nos desvencilharmos dessas motivações internas que facilmente se solidificam no campo externo ao do nosso viver.
Embora flerte com alguns traços mais obscuros da natureza humana — uma vez que, em uma das poucas descrições verbais presentes no longa, temos a figura central sendo descrita, merecidamente, como um perseguidor. Não há como ignorar a maturidade de “Na Cidade de Silvia”, que renuncia ao literário e entrega ao campo visual a tarefa de retratar as marcas físicas deixadas por nossos desejos — que configuram personas complexas e nada maniqueístas — que demarcam a nossa relação com o Cosmos ao nosso redor.