As Cidades de Chantal Akerman

Chantal Akerman representa o feminino em construção dentro do urbano, local de repressão e violência.

Por Carolina Azevedo*

Chantal Akerman retratou em seus filmes a sua própria realidade, o mundo por uma mulher que não sentia que encaixava muito bem nos lugares em que se encontrava, talvez porque era um pouco de tudo: escritora, diretora, mulher, judia. Ela não passa de uma das maiores diretoras de sua geração. Apenas uma mulher que fazia filmes.

Durante sua vida, Akerman passou por diversos espaços, cidades do mundo todo onde viveu com pessoas das mais diferentes, e foi isso o que retratou em seus filmes. Ela dizia que não há diferença entre ficção e realidade, e seus filmes falam exatamente isso através de imagens. Sua vasta obra vai de documentários a longa metragens ficcionais elaborados a simples curtas filmados, dirigidos, escritos e interpretados por ela mesma. Apesar da variedade, há algo que une as suas obras, a honestidade: ela representou a sua realidade, sentimentos e experiência nesse mundo em que ela “não pertencia”.

Seja na Nova York em que tenta ganhar a vida como diretora ou na Bruxelas em que cresceu, Chantal sempre representou uma realidade semelhante, isto é, a vida da mulher em conflito com sua identidade, sexualidade e existência em um mundo de misoginia e violações.

Em filmes como News From Home e Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60 à Bruxelles, a diretora mapeia a cidade, subvertendo os caminhos traçados no ambiente urbano e criando novas experiências no que diz respeito à vivência na cidade, refletindo o estado mental e os desejos da artista — que se projeta em seus personagens.

Portrait d’une jeune fille de la fin des années 60

A representação urbana em Akerman transcende o uso comum da cidade como espaço em que a história se desenrola, transformando-se em parte integrante da narrativa. Nomes de cidades são frequentemente parte dos títulos de filmes da diretora, como em Un divan à New York ou Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080, Bruxelles, ilustrando de cara a importância dos espaços na construção das histórias de suas personagens.

Enquanto Chantal lê as cartas de sua mãe sobrepostas a imagens estáticas da Nova York da década de 1970 e Circé anda pelas ruas de Bruxelas discutindo a filosofia, a sexualidade e os sentimentos inerentes a uma jovem de 16 anos, percebemos os efeitos específicos que o ambiente geográfico tem sobre as emoções e ações do indivíduo, sejam eles conscientes ou não.

Chantal Akerman em “Saute ma Ville”

Para Akerman, o urbano é o ambiente em que se torna mulher, onde se experiencia a vida doméstica que viria a ser um dos temas principais de sua filmografia. Em seu primeiro filme, Saute ma Ville (Exploda minha cidade), de 1968, a cidade é evocada no título como o ambiente destrutivo em que vive a mulher. No curta, a personagem principal — interpretada pela própria diretora — literalmente explode o “universo feminino” da vida doméstica ao qual ela estava presa.

Depois de concluir uma série de tarefas domésticas na cozinha de seu apartamento apertado na capital belga, em que sons da cidade ecoam com caoticidade, a personagem revolta contra o confinamento feminino ao espaço da casa, que se torna sua cidade metafórica, explodindo-a. Ao explodir sua cidade, Akerman promove a destruição da personagem de gênero, a mulher, que acaba morrendo no processo.

A mesma história se repete em Jeanne Dielman, em que o espaço da cidade metafórica se estende para a cidade literal de Bruxelas. Assim como a personagem de Akerman, Jeanne Dielman é uma mulher cuja vida limita-se às tarefas domésticas, uma vivencia insustentável que leva ao desastre ao final da trama, que discute também assuntos como a prostituição e sexualidade.

Jeanne Dielman descascando batatas

Nesse e em outros filmes da diretora como Portrait d’une jeune fille ou Les Rendez-vous d’Anna, os movimentos das personagens compõem a cena, criando a cidade. São as ações das personagens que constroem a arquitetura, as ruas e a identidade das cidades nas quais elas se passam.

Assim como suas personagens, Chantal Akerman constrói-se como um tipo de flâneur, um nômade que vai de cidade em cidade observando os personagens e por vezes filmando-os. Como dito no início deste ensaio, a diretora fez também inúmeros documentários, nos quais mostrava a vida de locais dos mais distintos. Em três documentários, Akerman ilustrou através de suas câmeras as vidas no leste europeu (D’Est, 1993), no sul dos Estados Unidos (Sud, 1999) e em Israel (Là-bas, 2006).

Filma-se a vida local de cidades estranhas através de um olhar subjetivo, o olhar de uma mulher belga e judia, uma cineasta, a mesma mulher representada em seus filmes de ficção é esta que representa a realidade a sua volta — de fato, realidade e ficção em Chantal Akerman não são tão diferentes.

Partes da cidade em “News from home”

Seu filme News from Home, por outro lado, representa exatamente tudo o que pode ser dito sobre o papel da cidade na composição de um filme. A obra usa de Jonas Mekas para construir uma história composta simplesmente por imagens estáticas de locais e pessoas desconhecidas para aproximar o distante do familiar. Vemos as ruas de Nova York enquanto ouvimos as palavras da mãe da diretora em dezenas de cartas enviadas durante o período em que viveram separadas.

Se fosse filmado em qualquer outra cidade, o longa não teria o mesmo efeito ou mesmo a força que tem do modo que é. Argumenta-se que News from Home seja uma forma de flânerie filmada, mas não aquela do discurso masculino, em que a visão do flâneur possui a cidade, mas aquela em que o sujeito é absorvido pela imagem de cidade. Os pontos da cidade são interligados pelo sentimento de solidão de distância que carregam as cartas.

Conforme o tempo passa, a voz da mãe é lentamente engolida pelos sons da cidade. O senso de nomadismo toma conta e a distância parece insuperável. Vemos a cidade inteira conforme a câmera afasta-se no oceano, uma cidade impenetrável, vazia, apenas um ponto que dá continuidade ao processo nomádico carregado por Chantal Akerman.

Cena final de “News From Home”

*Sobre a autora: Carolina Azevedo é estudante de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e editora-chefe da Revista Vertovina. Tem como principal interesse o cinema, sobretudo quando a arte se transforma em meio de mudança social, grito dos silenciados e resistência.

Referências:

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Amanda Wasielewski, Psychogeographic Mapping Through Film: Chantal Akerman’s News From Home and Patrick Keiller’s London, MA1 — Moving Image in Art, Sharon Morris, January 16, 2009 http://www.order.amandawasielewski.com

Evangelina Seiler e outros, Tempo Expandido — Chantal Akerman, Governo do Estado do Rio de Janeiro, Oi Futuro, 2019.

Chaplin, F. J., (TRANS.) (2015). A propos de Saute ma ville (1968 ), premier film de Chantal Akerman. Senses of Cinema. http://sensesofcinema.com/2015/chantal-akerman/saute-ma-ville/