A Força do Documentário Feminista em ‘Mulheres, Uma Outra História’

O programa, organizado pela revista inglesa Another Gaze e a organização estadunidense Cine Limite, reflete sobre a atuação de mulheres documentaristas no fomento do debate sobre o trabalho feminino no Brasil

Por Carolina Azevedo

“Acho que o governo não ajuda a gente porque ele não sabe dos problemas da gente.” De fato, foram poucos os que tiveram a coragem de falar sobre a condição da mulher trabalhadora, aquela que precisa ficar fora o dia inteiro para ganhar o bastante para talvez alimentar os filhos que cria sozinha. Algumas mulheres tomaram a causa do trabalho feminino nas mais diferentes áreas, enfrentando os mais diversos desafios, como objeto de estudo de seu cinema, mais especificamente de sua documentação audiovisual. O mais recente projeto de exibição ministrado pela revista inglesa Another Gaze e a organização estadunidense CineLimite reflete exatamente sobre essas mulheres e seus documentários.

Dando destaque para as contribuições essenciais de seis documentaristas brasileiras ao gênero fílmico, o programa “Mulheres: Uma Outra História” exibe seis filmes que discutem a realidade de diferentes trabalhadoras do Brasil inteiro, de prostitutas da Boca do Lixo a trabalhadoras metalúrgicas do ABC Paulista. Os curta-metragens fizeram, durante as décadas de 70 e 80, parte de pequenas exibições em televisão local ou grupos de estudos feministas, e finalmente ganham traduções e exibições em cinemas e no serviço de streaming gratuito da Another Gaze, Another Screen.

Creche-Lar dir. Maria Luiza d’Aboim (1978)

O primeiro filme, Creche-Lar, foi realizado por Maria Luiza d’Aboim em 1978 e tem 8 minutos de duração. Durante a década de 1970, a diretora carioca juntou-se ao movimento feminista, ajudando na fundação do Centro da Mulher Brasileira (CMB), uma organização feminista que abria espaço para a discussão a respeito do papel da mulher na sociedade. Uma das principais questões levantadas pela organização dizia respeito à questão da autonomia financeira da mulher, que inclui o problema das creches e do trabalho feminino enquanto mãe.

O documentário Creche-Lar aborda justamente essa questão, focando na iniciativa popular das creches experimentais tocadas por moradoras da Vila Kennedy, no Rio de Janeiro. Enquanto possibilitando que mulheres mantivessem seus empregos fora de casa enquanto mães, o projeto ainda garantia a renda de outras mulheres cujas casas serviam como creches à comunidade. O curta explora a linguagem documental ao entrevistar participantes do projeto, mostrando suas queixas enquanto mulheres e as soluções organizadas pela comunidade.

Sulanca, dir. Katia Mesel (1986)

O segundo filme, Sulanca, dirigido por Katia Mesel em 1986, conta a história da Feira de Sulanca, em Pernambuco. O mercado de roupas e outros objetos artesanais, descrito como um local pouco amigável a mulheres, aos poucos evolui como um lugar para que pequenas comerciantes possam tentar manter-se financeiramente independentes com seu próprio trabalho e produção, revolucionando a economia da região. Colorido e bem humorado, o documentário ilustra o poder da colaboração das mulheres trabalhadoras do nordeste brasileiro de forma emocionante em menos de 15 minutos de tela.

Trabalhadoras Metalúrgicas dir. Olga Futemma (1978)

Dirigido por Olga Futemma e lançado em 1978, Trabalhadoras Metalúrgicas documenta um congresso do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, o primeiro que tem como foco as mulheres da indústria. Além de documentar o evento, o curta de Futemma abre as portas para as discussões a respeito do tratamento desigual entre homens e mulheres na abusiva indústria metalúrgica. Servindo não apenas como filme propagandístico do sindicato, Trabalhadoras Metalúrgicas mostra o terror da vida como mulher operária, que reconhece: “Em um sentido vale a pena, mas em outros eu preferia ser homem. É mais fácil, a mulher enfrenta muitos problemas”

Mulheres da Boca dir. Inês Castilho e Cida Aidar (1982) e Amores de Rua dir. Eunice Gutman (1994)

Mulheres da Boca, de Inês Castilho e Cida Aidar, e Amores de Rua, de Eunice Gutman, buscam ilustrar outro lado do trabalho feminino pouco discutido pela sociedade, principalmente à época em que foram realizados: a prostituição. Enquanto o primeiro aposta em um documentário mais raso, com imagens que confundem arquivo e documentário, o segundo explora o que pensam as mulheres que trabalham com sexo de forma primorosa. Com diversas entrevistas e a exposição de pensamentos controversos e mesmo perigosos para a época, Gutman deixa clara a realidade das mulheres que já passaram pelas ruas da Boca do Lixo e as boates da Boca do Luxo.

Mulheres: Uma Outra História dir. Eunice Gutman (1988)

Por fim, o documentário que dá nome ao programa, Mulheres: uma outra história, também de Eunice Gutman, procura destacar a questão da participação feminina na política, uma questão ainda importante que leva toda a discussão dos outros curtas para um outro patamar, o da ação para além da observação. “Dizem que a escravidão acabou dia 13 de maio, não acabou não, porque se a mulher não tem independencia financeira ela continua escrava do marido.”

As mulheres que documentaram o trabalho feminino nas décadas de 70 e 80 no Brasil promoveram com seus filmes uma revolução no campo dos estudos feministas, no cinema e porque não na política. É a partir da mídia que a mudança política e econômica tem o poder de concretizar-se, e se as mulheres não mostrarem a realidade umas das outras não serão os homens que o farão, não de forma fidedigna. Você assiste aos seis curtas de Mulheres, uma outra história gratuitamente no mundo inteiro no Another Screen ao final do mês de março.