Por Maria Eduarda Moura
A intimidade que cerca o criador e sua criação é o que faz o meio artístico tão profundamente ligado ao ego, e mantém o questionamento de se é possível distinguir o artista da arte atual. Em A Ilha de Bergman, Mia Hansen-Love dirige uma discussão metalinguística sobre a relação entre artistas e obras, entre si mesmos e o entrelaçamento dessas facetas antes e depois da morte, em nenhum outro lugar além da Ilha de Faro, local onde Ingmar Bergman viveu, gravou e faleceu.
Apelidada por estrangeiros como Ilha Bergman, suas atividades giram em torno dos amantes de cinema que vão até lá para conhecer os cenários de Persona, Através De Um Espelho e A Paixão De Ana. A própria casa do diretor foi convertida em um retiro, onde artistas e acadêmicos se hospedam na esperança de contraírem um pouco da inspiração que Bergman teve e progredir em seus projetos, o que atrai o casal cineasta Tony e Chris (Tim Roth e Vicky Krieps). A chegada à casa onde foi gravado Cenas de Um Casamento (1974) — “filme que fez vários casais se divorciarem”, segundo uma das nativas da ilha — ressalta a falta de sintonia entre os dois e suas jornadas artísticas.
A vida e obra de Bergman representam coisas diferentes para o casal. Chris ama seus filmes mas não consegue entender o porquê, já que os assuntos são mórbidos e os personagens são detestáveis na maioria das vezes. Ela é a única que parece pesar os feitos artísticos e vida pessoal do diretor, e por isso tem dificuldade de colocá-lo em um pedestal como todos os outros ali. Quando Chris pergunta à acadêmica responsável pela curadoria do museu de Bergman se ele era um pai presente, recebe a resposta: “ Ele fez mais de 50 filmes em vida. Como acha que ele daria conta disso e de ser um pai presente para nove filhos? “.Nunca deixariam uma mulher se safar com isso”, ela retruca, e recebe alguns sorrisos amarelos, complacentes. Tony está mais para o lado dessa complacência: inspirado pelo diretor, ele participa dos painéis e eventos para falar não só sobre Bergman, como do filme que lançou e está em exibição na ilha. Ele está mais envolvido com os demais intelectuais e tem uma agenda onde Chris está sempre de acompanhante.
Paralelo aos seus sentimentos, a Ilha dá espaço para que a criatividade de Tony flua, enquanto a mesma calmaria sufoca e paralisa a esposa. É irônico que alguém se sinta esmagado pela quantidade de conteúdo sobre cinema em um lugar nomeado após um cineasta, mas essa dualidade é uma das manifestações do cabo de guerra interno e externo que é querer fazer parte de uma dupla enquanto se faz um trabalho que exige respeito à individualidade da criação.
Tony cabe bem no processo a lá Bergman de se isolar e sair apenas quando tiver um filme completo em mãos. Ele perde o interesse da esposa por querer encaixá-la dentro de seu modus operandi. Do outro lado, Chris contrasta com seu impulso por compartilhar, e o filme lhe dá esse espaço, focando mais no seu ponto de vista do que na de seu marido, o que leva à completa imersão na narrativa que criou, durante a última semana, e pede espaço para compartilhá-la com Tony. Sua ficção passa a ocupar a tela quando Amy (Mia Wasikowska) está andando no convés de um barco, rumo a Faro, para o casamento de uma amiga da faculdade. Ela nunca foi apegada aos longas de Ingmar, mas os tem como provedores de conforto, algo que a intriga e conforta, mesmo que não saiba o porquê ou a ordem de nenhum dos dois. Contemplativa, se questiona como os próximos dias se seguirão ao encontrar Jonathan (Anders Danielsen Lie), seu primeiro grande amor que começou na adolescência e durou até a vida adulta os separar. Apesar dos anos passarem, a atração que ambos sentem persiste, e eventualmente, eles cedem à ela durante os dias que passam juntos. Porém, logo depois da primeira noite que dormem juntos, Jonathan se afasta por se sentir culpado por trair a esposa. Amy tenta se reaproximar mas não ganha nenhuma abertura, até que Jonathan parte uma manhã sem se despedir. A história é uma versão mais Bergmaniana da própria realidade de Chris, cuja atenção do parceiro ela fica repescando enquanto pontua a narração por vários “Você ainda está me ouvindo?”.
Ao contrário do que o filme propõe de início, não estamos presenciando o rompimento do casal, mas sim um episódio de crise gerado pela natureza artística dos dois. De certa forma, esse filme lembra o casal Marianne e Johan de Cenas de Um Casamento, não por algum confronto homérico mas pela forma como se tratam como duas partes conectadas para além de amantes. O diálogo aberto sobre esses desencontros são leves e pontuados por ironia, como se aquela não fosse a primeira nem a última vez que aquilo acontece. Eles tentam estar juntos apesar de si mesmos e do processo artístico, com a certeza de que, enquanto indivíduos, não vão largar sua arte, e enquanto partes, não vão largar um ao outro.
Mia Hansen-Love cruza muito bem a corda bamba para homenagear outro diretor e não perder a essência própria. É uma legítima carta de amor ao cinema e às pessoas que o fazem, redigida com maestria. Um criador sempre parte da experiência própria, e nesse quesito vemos as discussões que levam um personagem a serem de um jeito e não de outro, os passos da pré-produção até a filmagem e os backstages, mesmo que em imaginação da personagem. O filme nos dá suficientes elementos Bergmanianos, mas pela admiradora querer não estar apenas à sombra de seu ídolo, acaba de forma muito mais calma e pacífica do que qualquer filme de casal do falecido diretor, afinal, Cenas de Um Casamento só aconteceu uma vez- duas, graças a HBO.
A Ilha de Bergman foi apresentada na 45° Mostra De Cinema Internacional De São Paulo e entrará no circuito alternativo a partir do dia 24 de fevereiro.