O Dinamismo das Fugas Juvenis em “Licorice Pizza”

Por Davi Krasilchik

A revisitação do passado é um dos caminhos mais conhecidos no cinema. Seja pela desconstrução ou simplesmente pelo louvor a eras que há muito nos abandonaram, a exploração de períodos que nos antecederam diversas vezes se refugia através da nostalgia, protegido pelo apreço que muitos nutrem por períodos que não viveram. Diante dessa barreira, não são poucos os retornos que acabam se configurando por meio da artificialidade, seduzidos pelo poder de sua própria iconoclastia.

Dono de uma das filmografias mais valorizadas dos últimos anos, o mergulho que Paul Thomas Anderson realiza sobre a Califórnia dos anos 70, entretanto, não poderia ser mais dotado de significado. Condicionado pelo dinamismo que o estrelato e as grandes produções do período pareciam esbanjar, o diretor materializa essa atmosfera por meio das idas e vindas de uma dupla que busca ansiosamente por pertencimento.

Impulsionado por seu sucesso considerável graças a carreira como ator mirim, o excêntrico Gary Valentine — interpretado pelo filho do grandioso Philip Seymour Hoffman, Cooper Hoffman — tenta conquistar a aspirante a atriz Alana Kane, moça dez anos mais velha que trabalha em seu colégio como assistente. Incorporada pela cantora Alana Haim — que já teve alguns de seus clipes dirigidos por Anderson e entrega aqui sua primeira e incrível interpretação -, a jovem luta para encontrar o seu propósito enquanto se envolve em curiosas situações ao lado do garoto.

A improvável dupla de “apaixonados”

Guiando o seu colorido cosmos antigo em função da dinâmica estabelecida entre os dois, impressiona a forma como a direção compreende a tônica dessa investida universal como o ponto de unificação, desviando a trajetória de diferentes coadjuvantes e mesmo pontos específicos da trama a um rápido esquecimento. Essa rotatividade acaba corroborando para o senso de constante urgência que sufoca a dupla principal, forçada a naturalizar inacabáveis fugas de uma situação a outra.

O primeiro encontro da dupla, que acontece durante os enfeites que antecipam a foto do anuário escolar

Nesse sentido, é interessante a maneira como esse último recurso de defesa acaba assumindo uma dupla dimensão. Em primeira instância, são bastante numerosas as circunstâncias que plastificam essa necessidade de escape. Seja por ambientar, logo em sua abertura, o encontro inicial em uma fila em andamento — constituindo um plano longo em que por mais que avancem nossos protagonistas não parecem chegar a lugar nenhum -, ou pelos segmentos em que correr realmente ressoa como a única resposta, o deslocamento é frequente e a obra alavanca justamente por reconhecer a importância da trajetória entre os pontos de saída e chegada.

Logo após ser confundido com um bandido e preso acidentalmente — uma condenação que é logo anulada, brincando com os limites entre o “certo” e o “errado” no amor -, a dupla escapa em conjunto.

Associando organicamente, por exemplo, recortes de reportagens reais à apaixonante ficção ali conduzida, P.T.A condena uma das empreitadas construídas pelos dois pela conjuração da crise do petróleo. A volatilidade econômica da época de repente aparece para ameaçar as entregas dos colchões de água — signo que por si só representa, de maneira hilária, a transfiguração permanente dos sentimentos amorosos, intensos por debaixo de carapuças feitas de plástico -, frustrando o bom uso do caminhão que condiciona as escapatórias literais.

O caminhão de entrega usado por Gary e seus amigos, símbolo literal de avanço mas que também denuncia a inocência de cada um deles.

Ao receber tal notícia, entretanto, a inabalável aura de Gary Valentine resulta em uma belíssima sequência na rua, em que a personagem avança pela calçada ao lado de metros e metros de asfalto ocupado por carros. O congestionamento que poderia servir de um prenúncio pessimista é então neutralizado pela energia do garoto e embalado por “Life On Mars”, de David Bowie, convertendo os automóveis em um reflexo da universalidade que tangencia as procuras amorosas.

Mais adiante, o encontro com um conturbado Jon Peters — produtor famoso que aqui é desconstruído na pele de Bradley Cooper — desdobra essas construções de forma igualmente interessante. Do pisca alerta vermelho que cristaliza os instintos primitivos que ele é incapaz de reter, à longa fuga em contramão em uma caminhonete sem gasolina, temos mais evidências que apontam para esse ciclo infinito de correrias. Não é só o reencontro inevitável com Peters logo após dirigir por quilômetros, contudo, que aponta para essa condição humana, mas também a caricatura que circunda o perfil construído por ele.

A ridicularização de Jon Peters como forma de demonstrar as performances que nos afastam de nossa verdadeira natureza. Forçada, sua atuação é propositalmente irreal.

Agressivo, movido pelo carnal e dissociado de qualquer traço genuíno, ele desponta como uma demonstração de que a idade, o avançar pelo tempo, não é necessariamente um neutralizador dos desvios em relação ao verdadeiro. Seguro em seu discurso preparado, a maneira como Gary guia seu primeiro encontro, por exemplo, não poderia ser mais cômica, produto de uma personalidade que tenta a qualquer custo acelerar o próprio crescimento.

Em uma apresentação ao vivo na televisão, em outra passagem, Valentine dança em meio a diversas crianças, transparecendo a miscelânea ingênua e amadurecida que reside em seu interior. Busca assim, em alguns momentos, se distanciar das virtudes que o tornariam inapto a dividir a vida com Alana, mas seria injusto ignorar que mesmo a adulta mais velha se define por suas próprias dificuldades em avançar.

Conforme questiona ao lado de sua irmã, ela não consegue definir o quão apropriado seria o compartilhar de aventuras com um mero menino de 15 anos de idade. Jamais ousando pender para o que seria certo ou o que seria errado, o olhar de P.T.A brilha justamente por utilizar da indefinição dessa essência, orquestrando ao redor das constantes mutações que isso traz. É o que justifica o desaparecimento de algumas linhas narrativas — como se a dupla saltasse de oportunidade em oportunidade, sejam elas relacionadas à procura por um parceiro ou não — e resume todo o conjunto operado em tela justamente ao único ponto realmente relevante — o laço que acaba por unir Gary e Alana.

O colchão inflável como símbolo da volatilidade do amor entre eles.

Intoxicados pelo gosto pela dramaturgia — que permite ao profissional escapar de sua própria pele -, ambos se encontram em um estado de confusão em que intenções acabam externalizadas de forma ambígua e confusa, se confundindo entre o interesse objetificado e a essência verdadeira. Mesmo que nem sempre isso esteja claro às figuras dentro da tela em si, é curioso como a obliteração de várias conexões fracassadas — caso não só do terrível dono do restaurante asiático, para além do já citado Jon Peters, como também da covardia inerente ao candidato à prefeitura Joel Wachs (Benny Safdie), cujo relacionamento naufraga pela incapacidade de ser si próprio — naturalizam essa essência indefinida para o espectador.

Tal aspecto é justamente o que melhor impulsiona a leveza que muitos têm atribuído ao longa — a forma como a produção reconhece a beleza dessas imprecisões, oscilando junto aos protagonistas entre o verdadeiro e o artificial. É claro que o primeiro acaba sendo almejado como objetivo principal, mas é esse admitir que permite outras das passagens mais deliciosas. A câmera na mão cujo tremer se acentua quando Gary não consegue encontrar palavras do outro lado da linha telefônica, a forma como um truque impressionante sobre as rodas de uma moto é subitamente abandonado diante de um gesto menor mas nem por isso menos significativo, e a maneira através da qual o comprimento de uma calçada é distorcido pela montagem para amplificar a emoção de uma reconciliação são alguns dos recursos visivelmente artificiais que confluem para construir signos que, por mais falsos que possam parecer, transbordam em genuinidade.

Desse modo, e despreocupado com maiores conclusões, “Licorice Pizza” revisita o passado e se afasta de quaisquer julgamentos morais em relação aos sentimentos desafiadores que o brilho das imagens pode proporcionar. Ciente da complexidade que acompanha um amor juvenil — e que nem por isso diminui em densidade com o avançar da idade -, Paul Thomas Anderson minimiza a melancolia típica de laços fragmentados ao reconhecer o dinamismo das buscas juvenis.

Associa assim, esse último, ao vibrante jogo de luzes de uma Califórnia setentista, palco perfeito para a combustão de sonhos que podem ou não se tornar realidade. Se prevenindo contra o possível fracasso e desnaturação desses — e para isso tecendo de forma bem humorada vários contornos entre o material e o real -, conquista então por admitir que pouco importam as conclusões, mas sim a força da intoxicação gerada pelos sentimentos que nos levam a buscá-las em primeiro lugar.

Fontes:

https://www.omelete.com.br/filmes/criticas/licorice-pizza-filme-critica

https://www.planoaberto.com.br/licorice-pizza/