O Simbolismo e a Instabilidade no processo de amadurecimento em Moving e Typhoon Club

Shinji Somai não apenas foi o símbolo de uma fase no cinema japonês, ele retratou a juventude e a infância de uma maneira autêntica e pura

Por Matheus Fortunato*

Nos anos 60, o cinema japonês passa por um período de instabilidade. O antigo sistema, aquele dominado por vários estúdios de cinema, entre eles: Daiei, Nikkatsu, Shochiku, Toho e a New Toho, estava prestes a ruir. Na década seguinte, esse sistema já não era mais o principal em pauta no cenário de produção fílmica japonesa e assim atingiu seu declínio. Na década de 80, o cinema japonês entra numa fase “pós-estúdio”, ou como também foi chamado, “pós-pósguerra”. Junto ao símbolo desta fase, surge um grupo de cineastas, utilizando de orçamento limitado, visão ambiciosa e transformando essas peculiaridades do momento em uma maré de oportunidades, entre eles: Kiyoshi Kurosawa, Masayuki Suwa, Rokuro Mochizuki, Yoichi Sai, Takashi Ishii e Shinji Somai.

“Se eu tivesse um nome de um cineasta que melhor representasse o cinema contemporâneo japonês, eu escolheria imediatamente Somai. Desde sua estreia em 1980, ele constantemente faz filmes com ambição genuína. Apesar de que alguns deles são conhecidos fora do Japão (com exceção de Typhoon Club (1985)), todos os treze são atraentemente provocativos. É o tempo certo de introduzir à audiência americana seu trabalho com uma retrospectiva completa.”¹

Somai teve sua estreia no ano de 1980 com seu filme Tonda Couple, uma adaptação do mangá de mesmo nome. Muitos de seus filmes foram produzidos entre os anos 80 e 87. Diferentemente de Typhoon Club (1985), Moving foi produzido após a década de 80, mais precisamente em 1993. Não sendo prejudicado pela diferença temporal, Somai constrói uma personagem brilhante e consegue transmitir exatamente o que se passa em sua mente.

A INSTABILIDADE FAMILIAR COMO ALAVANCA PARA UM AMADURECIMENTO PRECOCE EM MOVING

Renko Urushiba é uma menina da sexta série que de repente, se vê em uma situação onde os pais anunciam o divórcio, e a partir deste momento precisa lidar com diversas situações onde seu maior desejo é a retomada da relação de seus pais.

O diretor começa o filme em uma cena de jantar onde já existe a presença de um caos. Ren permite que o espectador já sinta o desconforto e uma perturbação nos primeiros minutos de filme, e essas sensações apenas crescem no decorrer de Moving. Na cena seguinte à de abertura, Ren começa a lidar com a nova situação de seus pais, então começa a correr. Apesar de mais curta, é inegável não fazer um paralelo com a cena de Antoine Doinel correndo no trecho final de Os Incompreendidos. Se com François Truffaut, Jean Pierre Léaud era a estrela, aqui em Moving (1993) não é diferente, já que Tomoko Tabata (Ren) é quem conduz o espectador em sua trajetória de instabilidade, confusão e aflição.

Ren encontra um pouco de sossego enquanto toma banho.

Mesmo tendo muitos momentos de caos, Ren encontra a presença de sossego em um momento onde tomava banho, por mais que ela quisesse a retomada da relação de seus pais, seus momentos mais confortáveis eram quando a personagem estava sozinha.

Ren não busca um isolamento por opção, mas sempre que a personagem é confrontada em uma situação de lembrança da separação dos pais, ela cai em profundo desespero e desordem. As cenas que mais representam isso são as de quando a personagem escolhe ficar trancada no banheiro após um momento de confronto com sua mãe, e uma anterior a essa, quando suas colegas começam a fofocar na sala de aula e Ren se enfurece.

Moving tem duas cenas muito marcantes, sendo a primeira a que Ren pega carona pela primeira vez com o seu pai, carregando um simbolismo gigante. Principalmente por fazer um contraste àquelas sensações negativas que a personagem sentia desde o início, esse momento onde Ren está com o seu pai é bastante intimista e confortável para ela e para o espectador ao mesmo tempo em que não deixa de ser tocante.

Ren recebe uma carona de moto de seu pai, Kenichi.

Um outro trecho que também marca muito o filme é próximo ao seu final, quando Ren está ainda mais perdida e isolada das outras pessoas e começa a andar pela floresta sem rumo, até chegar em um ponto em que se encontra com sua mãe e seu pai na comemoração de ano novo. A diferença entre as duas cenas é clara: uma delas é de algo realmente acontecendo no plano do filme e a outra é apenas a lembrança de uma memória que provavelmente não irá ocorrer. A importância desta última é gigantesca, pois ela serve como um verdadeiro divisor de águas para a personagem, visto que é possível enxergar um amadurecimento na visão de Ren, mesmo que este seja muito influenciado pelos acontecimentos e percalços pelos quais ela passou.

Por fim, o que Renko vive em todo filme é representado em um diálogo onde a protagonista conversa com sua mãe e em certo momento, fala que vai fazer de tudo para se tornar adulta e crescer logo, é mais um momento onde o amadurecimento precoce de Ren se torna presente. A instabilidade em um ambiente familiar pode realmente forçar a necessidade de um amadurecimento que, em seu caso, ainda não é a hora.

Ren em uma das últimas cenas de Moving.

Em Moving, Somai faz um trabalho de personagem incrível e consegue transmitir ao espectador exatamente o que se passa na cabeça de Renko dando uma dimensão ainda maior às suas emoções. Existe algo pior do que ver o seu lar ameaçado tão precocemente que para ignorar isso é necessário se forçar a amadurecer?

O SIMBOLISMO ENTRE A VIDA E A MORTE EM TYPHOON CLUB

Em Typhoon Club, Somai conta a história de um grupo de estudantes que ficam presos após a chegada de um Tufão, tendo Rie e Mikami no centro da narrativa, ambos populares, mas com certos problemas internos não muito bem resolvidos. Sendo produzido bem antes, Typhoon Club (1985) é bem diferente de Moving (1993). Se em Moving o ambiente onde o filme se passa é predominantemente familiar, em Typhoon Club o ambiente escolar é utilizado como cenário para Somai desenvolver sua história e fazer uma série de comentários.

Há uma diferença de tom muito clara aqui. Diferentemente de Moving, este filme é bem mais maleável, tendo não apenas momentos engraçados como também momentos onde a obra torna-se verdadeiramente sombria, especialmente com a chegada do tufão. Essa característica tem muito a ver com os temas que Somai trata. É muito impressionante que o diretor seja ambicioso ao ponto de tentar tratar de tantos temas diferentes e alguns até delicados em um filme que pode ser visto como um coming of age.

Cena do filme onde os alunos que estavam na escola saem para tomar banho de chuva.

Há um simbolismo nítido entre a chegada do Tufão e a mudança de comportamento dos personagens do filme. A partir do momento de sua chegada, a narrativa além de se tornar bem mais sombria, se torna bem mais gráfica. Somai arrisca tanto que a produção em alguns momentos ganha tons de surrealismo e horror. A ambição do diretor aqui é clara, ele não queria que este fosse apenas mais um filme coming of age tradicional, e por isso ele vai totalmente na contramão e faz uma obra de arte repleta de comentários sobre jovens e sua relação com a vida, amor, sexo, violência e filosofia.

O trecho final não foge da maneira com que o Somai trata os temas em seu longa. Mesmo que seja uma cena de morte e impactante, o diretor faz com que seja levemente amenizada e não fique tão pesada quanto poderia ficar. No final das contas, Somai cria uma obra bem admirável, não apenas pela sua ambição, mas pela maneira com que conduz o filme e como desenvolve os seus comentários de maneira única.

A cena mais famosa do filme onde os personagens performam juntos uma música que simbolicamente representa uma manifestação sobre liberdade ante ao amadurecimento.

Portanto, Shinji Somai foi um dos melhores diretores contemporâneos que o cinema japonês já teve e o símbolo de um período onde os estúdios não dominavam. Com a sua visão ambiciosa de fazer cinema, o diretor conseguiu desenvolver muito bem seu olhar em torno da juventude e amadurecimento, seja no ambiente mais familiar e tradicional em Moving ou em um ambiente escolar tratando de diferentes temas e com bastante simbolismo em Typhoon Club.

*Sobre o autor: Matheus Fortunato é estudante de Administração, é apaixonado por cinema experimental e arte em todas as suas formas. Interessado pela maneira com que o cinema possibilita cada pessoa poder experimentar e produzir arte de diferentes meios.

Referências:

¹Yamane, Sadao. Sadao Yamane on the” post-postwar” generation of Japanese filmmakers. Film Comment 38.1 (2002): 10. Disponível em:<https://www.proquest.com/openview/0cbe7373b3d8032659c80b1f4b5a14e0/1?pq-origsite=gscholar&cbl=24820>

Ando, Naomi, et al. Composition and deconstruction of spaces depicted in Shinji Somai’s films. International Conference on Geometry and Graphics. Springer, Cham, 2018. Disponível em:<https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-319-95588-9_10>