A juventude deslocada de A Segurança Interna

Por Felipe Palmieri*

A Segurança Interna (2000) é um filme alemão dirigido pelo aclamado diretor Christian Petzold no início de sua carreira. É uma obra que oferece um olhar sereno e contemplativo, mas ainda muito objetivo, sobre a vida de uma família — com enfoque principal na filha e protagonista, Jeanne. O holofote dado à juventude no filme serve o propósito de analisar as reações e relações juvenis com a conturbada história recente do país germânico, e como esse laço conflita com o desenvolvimento social e intelectual individual de cada jovem.

A narrativa, como torna-se tendência ao longo da carreira de Petzold, aborda alguns temas delicados e pouco explorados no escopo político e social dentro do cinema. No caso de A Segurança Interna, trata-se da menção sútil à participação dos pais de Jeanne, Hans e Clara, no grupo guerrilheiro de esquerda “RAF”, que em versões originais do roteiro era citado de forma mais frequente e direta. Porém, a versão mais explícita do roteiro não conseguia convencer produtores a financiar o filme — pelo mesmo medo de expor a própria história alemã que A Segurança Interna traz à tona em sua diegese.

Heinrich (Bilge Bingul) e Jeanne (Julia Hummer) conversando

Pode-se argumentar, no entanto, que a sutileza exigida acabou por enriquecer o filme mais ainda — considerando-se que a perspectiva pela qual a história é contada é de uma adolescente que pouco sabe sobre o contexto histórico ou envolvimento dos pais em quaisquer conflitos políticos. Cria-se então uma relação muito mais empática com Jeanne, a partir do momento que somos informados em relances sobre as reais atividades de seus pais ao mesmo tempo e com a mesma quantidade de informação que ela. Essa empatia é a chave para entendermos o coração do filme: a perda da juventude.

A história inicia-se com a família, composta por Jeanne e seus pais, hospedando-se em uma cidade litorânea pouco atraente de Portugal. Jeanne conhece um outro jovem alemão no local, Heinrich, pelo qual se apaixona. Entre a união desses dois adolescentes, a família é exposta após ter sua real identidade descoberta pela polícia local e seus documentos e dinheiro roubados por ladrões. Hans, Clara e Jeanne são então forçados a voltar para a Alemanha para encontrar refúgio.

Já se expõe desde o início o conflito interno e externo da narrativa. Temos uma adolescente sendo forçada a abandonar os laços que vinha construindo em prol de seus pais, buscando segurança ao fugir do passado que os alcança. Ocorrência que provavelmente não é novidade para Jeanne, vide a reação frustrada mas pouco surpresa da jovem.

Hans (Richy Müller) em A Segurança Interna

O que se sucede são as tentativas inúmeras de Hans e Clara de conseguirem dinheiro suficiente para fugirem da Europa com os passaportes que lhes restaram, as quais são justapostas aos encontros e desencontros de Jeanne com outros adolescentes e, principalmente, seu reencontro com Heinrich. São dois núcleos entrelaçados apenas pela protagonista, mas que não existiriam da forma como existem separadamente. O cuidado e a obsessão com seriedade e segurança dos ex-guerrilheiros são evidentes a todo o momento, mas nada é mais contrastante com essas necessidades que a busca por individualidade de uma adolescente.

A dinâmica mais comum nas cenas é a de Jeanne presente nos planejamentos e discussões dos pais, mas sempre ansiando pela vida que a aguarda quando tudo passar. Seja na casa de um ex-companheiro dos pais ao abandonar a sala onde o encontro ocorria para ouvir música com a filha deste, ou quando decide fugir do esconderijo da família para roubar uma loja de roupas (por não aguentar as roupas que seus pais a forçaram a usar), e mais proeminentemente nas fugas para encontrar-se com Heinrich.

Clara (Barbara Auer), Jeanne e Hans no carro, em fuga

Em certa cena do filme, durante uma das fugas de Jeanne, acontece algo muito emblemático para a construção temática do filme. Logo após ter roubado roupas de uma loja, a jovem é abordada por uma desconhecida e é convidada para assistir à projeção do documentário Noite e Neblina (1956) de Alain Resnais, que seria realizada na escola desta. O documentário é um clássico que aborda as atrocidades e consequências do Holocausto. Após a projeção, o professor que organizou o evento — em meio a um desabafo sobre como seus alunos não pareciam interessados em entender a história de seu próprio país — questiona Jeanne sobre o que ela tinha a dizer sobre o filme, e ela simplesmente foge do local.

A Segurança Interna é uma exploração sobre as cicatrizes de um passado que se esconde atrás de fachadas inofensivas, e como a identidade se corrompe na fuga das consequências deste. Jeanne perde momentos cruciais de sua vida em espaços nulos — interiores de carro, shoppings, hotéis, escritórios –, lugares de transição, dos quais extrai-se apenas a vontade de ir embora. São as fachadas de uma vida em fuga, de uma sociedade que recusa seu passado e enterra seu futuro no processo.

O conflito entre lealdade aos pais e as necessidades de Jeanne como pessoa é a força maior que guia os rumos da obra. Cada momento de um lado dessa moeda gera uma consequência negativa do outro. Ficar com o namorado é perigoso para os pais, ajudá-los é ruim para seu relacionamento, e não há solução para o impasse que não implique em desistir de um dos lados. E no conhecimento comum reside a resposta encontrada no filme, pois se há algo mais potente que o ímpeto por liberdade na juventude são as amarras que a família impõe.

*Sobre o autor: Felipe Palmieri é estudante de Cinema na FAAP. Absolutamente fascinado por todas as pluralidades e sutilezas que a linguagem cinematográfica é capaz de abrigar, e pelas infinitas perspectivas que foram e serão materializadas através disso.

FONTES:

Kern, Andreas. The State I Am In (Die Innere Sicherheit). ScreenDaily, 28 jun de 2001. https://www.screendaily.com/the-state-i-am-in-die-innere-sicherheit/406127.article.

Porton, R., & Petzold, C. (2019). Lives In Transit: An Interview with Christian Petzold. Cinéaste, 44(2), 17–21. https://www.jstor.org/stable/26664268.

Pulver, Andrew. The State I Am In. Special report: the Edinburgh festival 2001, The Guardian. 24 Ago 2001. https://www.theguardian.com/culture/2001/aug/24/edinburghfestival2001.edinburghfestival4.

Stratton, David. The State I Am In. Variety, Oct 9, 2000. https://variety.com/2000/film/reviews/the-state-i-am-in-1200464840/.