Dos subúrbios parisienses à famosa capital francesa; em La Haine seguimos a jornada de três jovens rebeldes que lutam para acabar com um sistema que tanto os prejudica
Por Matheus Arroyo
“Sou fã dos franceses porque qualquer coisa eles vão lá e queimam carros”. Se, por acaso, você possui redes sociais, provavelmente já se deparou repetidas vezes com essa frase, que até mesmo virou uma página no Facebook. De fato, os franceses realmente queimam muitos carros — foram mais de 800 somente nesse último réveillon. 874, para ser mais exato.
Ganhar dinheiro do seguro, se livrar de um veículo roubado, ou simplesmente porque é “bonito” observar as chamas, os motivos para a queima dos automóveis variam, porém o principal deles também é o mais conhecido: protestar, seja qual for a causa.
Desde a Revolução Francesa (séc. XVIII) à Revolta Estudantil (1968); não é surpresa que o povo da França possui, historicamente, uma certa “mania” — ou coragem — de protestar. Entre Outubro e Novembro de 2005, por exemplo, mais de oito mil carros foram queimados no país em resposta às mortes, após uma perseguição policial, dos adolescentes Zyed Benna e Bouna Traoré, na cidade de Clichy-sous-Bois. Os protestos fizeram a França entrar em estado de emergência, resultando na prisão de mais de duas mil pessoas e escancarou a questão da violência policial contra jovens dos chamados banlieues (subúrbios).
Dez anos antes, em 1995, filas eram formadas em frente aos cinemas franceses para a estréia de uma obra que levaria toda a atmosfera de um protesto para a grande tela. La Haine, de Mathieu Kassovitz, é um filme sobre luta, representatividade, violência, reivindicações e, acima de tudo, sobre a juventude, a qual possui caráter insurgente e está sempre em contraste com o local onde vive, nesse caso, os subúrbios.
“Já ouviu a história sobre o homem que caiu de um arranha-céu? Durante seu caminho até o chão, a cada andar, ele repetia a si mesmo: ‘até aqui tudo bem, até aqui tudo bem, até aqui tudo bem..’ O importante não é como você cai. É a aterrisagem”. La Haine, desde sua primeira cena, nos impacta de diferentes formas, seja pela sua bela fotografia, seus criativos diálogos ou pelo seu enredo, o qual, mesmo partindo de uma premissa simples, toma rumos completamente inusitados.
Acompanhamos 24 horas na vida de três jovens dos banlieues e à medida que o tempo passa no filme, o horário é mostrado na tela enquanto um som de relógio ecoa no fundo. Uma metáfora utilizada pelo diretor para relacionar os subúrbios com uma bomba social prestes a explodir.
A ideia para o roteiro veio dois anos antes, em 6 de abril de 1993, após Makome M’Bowole, um jovem do Zaire, ter sido morto enquanto estava sob custódia da polícia. Kassovitz se perguntou: “Como um rapaz pode levantar de manhã e morrer na mesma noite dessa maneira?”. A morte de M’Bowole havia sido uma das mais de 300 causadas pela polícia francesa desde 1981, das quais muitas das vítimas eram dos subúrbios.
Seguindo nessa linha, La Haine começa com a notícia de que Abdel Ichaha, um jovem imigrante dos banlieues e amigo dos personagens principais, foi gravemente ferido pelos policiais em um protesto, o que o deixou em estado grave no hospital.
O filme pode ser dividido em duas partes: a primeira se passa nos subúrbios, onde nossos três protagonistas moram e, por conta disso, estão habituados àquele ambiente. Já a segunda ocorre em Paris, porém a cidade não é mostrada de uma forma bela e romantizada como vemos em diversos outros filmes, e sim como um lugar hostil e até mesmo difícil de ser reconhecido, deixando claro que nosso trio não faz parte dele.
Hubert, Vinz e Saïd — nomes “herdados” dos atores por trás dos personagens: Hubert Koundé, Vincent Cassel, e Saïd Taghmaoui — representam uma parcela da juventude francesa multiracial, excluída e oprimida, o que os torna, ao contrário do título do clássico longa estrelado por James Dean, rebeldes com causa.
A alusão a Rebel Without a Cause, filme de 1955, é necessária para notarmos como a figura do “rebelde” foi modificada em La Haine. Roupas fashion, gel no cabelo, um carro bacana e muita atitude, as características dos rebeldes de Hollywood naquela época puxam mais para o sentido “insubordinado” da palavra. Se tratava de uma rebeldia narcisista, na qual o mais importante era parecer legal para o público.
Quarenta anos depois, na obra de Kassovitz, nossos rebeldes dão um significado muito mais profundo à palavra, indo para o sentido mais “revolucionário” dela. Eles ainda usam roupas de marca — algumas conhecidas como Nike, Carhartt e Reebok -, se preocupam com seus cabelos e, é claro, têm grande atitude. Entretanto, estão lutando para acabar com um sistema que os prejudica tanto, o que, além de ser muito maior do que apenas parecer legal, influenciaria, não só as suas vidas, mas a de todos ao seu redor.
O impacto de La Haine reverberou para além das telas do cinema. Logo após seu lançamento, a mídia e os políticos franceses acusaram o filme de ter influenciado alguns protestos em Noisy-le-Grand, realizados pelos moradores do banlieues. Em vez de culparem a pobreza, a discriminação ou qualquer outro tipo de problema enfrentado pela juventude suburbana, responsabilizaram um filme o qual denotava tudo isso que essas pessoas viviam.
É muito fácil para as gerações mais novas dos subúrbios se identificarem com essa obra, afinal ela foi uma das primeiras que, além de não ter demonizado o local onde vivem, os colocou como protagonistas de sua própria narrativa. Nossos personagens, apesar de enfrentarem uma difícil realidade, são ambiciosos, se divertem e têm em sua vida familiares que os amam.
La Haine é um filme original que fez as perguntas corretas, enquanto os demais faziam as erradas, deu voz e visibilidade àqueles que não as tinham, evidenciou diversos problemas da sociedade francesa e finalizou deixando uma mensagem especial para toda a juventude ao redor do mundo: le monde est à nous (o mundo é nosso).