A Libertação Profana de “O Bosque dos Sonâmbulos”

Por Davi Krasilchik

A consagração do signo vampírico através das formas de expressão artística não é proveniente dos dias de hoje. Ela está enraizada, há várias décadas, no interior do imaginário popular, sua constituição no campo imagético tendo se associado desde cedo à estética gótica, tangenciando especialmente a dimensão iconográfica imortalizada pela atmosfera sombria, retorcida e de caráter fantasmagórico, que de diversas maneiras passou a buscar formas abstratas de subversão da realidade.

Fosse por intermédio da imortalidade, que fere diretamente o pilar fundamental do caráter de expiração da vida, ou pela performance de demais habilidades sobrenaturais, como o metamorfosear entre a forma humana e a do morcego, a sua existência sempre esteve vinculada ao proibido, representando princípios tangentes à distorção de valores e leis humanas. Nesse processo, uma plastificação paralela a dos lordes tipicamente retorcidos e prejudicados pelo envelhecimento começou a se desenvolver, priorizando uma caracterização configurada pela beleza e a sedução proveniente da última.

Nosferatu, proporcionado pelos traumas de uma Alemanha assolada pela Primeira Guerra Mundial, cuja magreza e feiura clássicas eram a culminação de um medo generalizado pelo imaginário da época passava a dividir o espaço com um Drácula cavalheiresco e magnético, cuja sede sangrenta emergia como um novo atrativo.

A reprodução massiva de figuras como o Drácula logo se apossou da cultura popular, e não demorou para que figuras como a criada pelo autor irlandês Bram Stoker se convertessem em uma interessante metáfora para a natureza humana.

Eficientes na harmonização entre a aparência bela e domesticada e traços mais primitivos e carnais — haja visto a manutenção do sangue humano como principal objeto de cobiça — esses arquétipos se tornaram muito influentes dentro do contexto das narrativas fantásticas, ilustrando magistralmente os conflitos internalizados por nossa espécie e responsáveis por nossa tamanha complexidade.

Com o avançar das décadas, e à medida que demais seres da imaginação — e, no âmbito das indústrias artísticas, do campo do horror — passaram a também dialogar a respeito das contradições humanas, se constituiu uma interessante reinvindicação desses rostos por parte de setores e camadas historicamente inferiorizadas, que encontraram nesses símbolos formas de externalizar a insatisfação proveniente de anos ininterruptos de julgamentos incoerentes de juízo e moral que ousaram classificar alguns de seus traços mais humanos como incongruentes.

No que diz respeito à cultura vampírica, é como se anos de perseguição viessem a ser subvertidos por uma espécie de autorização auto proclamada, que redimensiona a proibitividade injustamente colocadas por convenções sociais arcaicas, entre as quais podemos apontar a atração entre indivíduos de um mesmo sexo ou a falta de identificação com gêneros determinados por um ultrapassado código binário, para o campo de um discurso de reafirmação de orgulho.

O temor e a vergonha de performar esses atos “subversivos” encontram nessas obras uma plataforma de libertação, que transformou tais presenças e sua estética particular de subversão do real uma poderosa ponte de representação, que celebra a fuga de uma normalidade opressiva condenada durante muito tempo.

Quem bem representa esse ideal é o curta-metragem “O Bosque Dos Sonâmbulos”, dirigido por Matheus Marchetti, que harmoniza as liberdades linguísticas autorizadas pelo gênero musical a elementos clássicos da mitologia vampiresca.

Filmado como um projeto de conclusão do curso de Cinema realizado na Fundação Armando Álvares Penteado, no qual Matheus se formou em 2017, o filme acompanha um grupo de hóspedes que reside em um antigo hotel localizado dentre as montanhas. Os dias apáticos ambientados em um hall opressor são substituídos por uma noite obscura mas libertadora, quando, sob o efeito de um inesperado feitiço, todos se libertam para perseguir os seus desejos mais profundos. No processo, uma forte paixão floresce entre o tímido Thomas (Celo Carvalho) e o sedutor Roman (Pier Marchi), dando início a um ritual cantante que se torna o fio condutor da produção.

O reprimido Thomas em um hall cinzento, temeroso pelas sensações que Roman, imerso em um espaço vivo e seguro através do piano pelo qual se expressa, passa a despertar em si.

Munido de grandiosa personalidade imagética, a ampla variabilidade dos tons coloridos é um dos primeiros fatores a se destacar. Ela isola alguns elementos em planos registrados em preto e branco — conforme alguns que sucedem o casamento entre os protagonistas, em que a capa vermelha do irmão de Thomas ou o sangue igualmente vibrante que escorre pelo rosto do mesmo passam a saltar aos olhos, definindo-o simbolicamente — como compondo mosaicos que intensamente determinam a libertação oferecida pelo escurecer.

A mistura de cores vibrantes que dá vida a um bosque impossível em contraste com um plano cujo o vermelho da capa isola e acentua o medo exteriorizado pelo pequeno Oliver (Kaleb Figueiredo)

Essa manutenção de uma lógica própria, que amplifica a desconstrução do realismo para diversos âmbitos, corrobora para a existência das ilustrações ali colocadas para além do campo imagético de maneira dual. Se por um lado ela opta pela abstração a partir de construções visuais que reconhecem a sua dimensão deslocada das leis naturais, o que reforçaria a limitação daquelas figuras fictícias, por outro essa artificialização assumida reforça a imortalidade dos presentes em tela como espelhos de angústias reais.

Nesse sentido, merece especial menção os recortes isolados, unificados pela tônica enérgica das montagens musicais — cujas melodias e letras, compostas por Victor Mascarenhas, evocam um período antigo, repletos de um teor clássico que beira a uma estaticidade temporal — cujos signos engrandecem esse aspecto do auto reconhecimento metafórico. Reflexos desse caminho estão no vestido que voa pelos corredores, libertando os sonâmbulos que ali despertam mas ao mesmo tempo indicando o conflito interno que os impulsionam a lutar contra as suas carapuças externas, solidificadas em suas peles e vestimentas, e no uso de reflexos e silhuetas, suspendendo a literalidade dos formatos humanos.

O vestido que emerge das sombras e o reflexo de uma personagem na superfície de um piano, que mesmo distorcendo a sua imagem também estende a sua presença para além da limitada forma física.

Não suficiente, é igualmente interessante o grau de teatralidade que o projeto ainda carrega consigo para traduzir essa essência da busca pela liberdade, contrapondo planos munidos de uma maior movimentação de câmera com a estaticidade de alguns enquadramentos que vão sendo complementados aos poucos. Tal assinatura não apenas remete a um fazer artístico mais primitivo, aqui presente pelos planos mais abertos eleitos para a retratação das coreografias, como também estimula a importância da performance, por vezes a única maneira de utilização de nossos perfis genuínos, enquanto ainda alerta para deslocamentos.

O grau ainda aterrador da dificuldade de aceitar a própria essência, posto ao lado de um dos planos que melhor remetem ao uso de um staging mais teatral.

Sendo assim, é magnético o exercício onírico que “O Bosque dos Sonâmbulos” articula a partir de um lindo duelo a respeito do acesso aos próprios instintos e personalidades. Colocando a figura vampírica como a ponte para contrapor a primitividade interna, domesticada ao longo de décadas de socializações limitantes, e a cristalização de comportamentos externos, Matheus Marchetti propõe uma viagem litúrgica de rendimento ao desejo, sustentando com uma unidade visual extremamente fantasiosa e sedutora o magnetismo que o último pode trazer. Tem-se assim um uso da linguagem que compreende magistralmente a sua dupla comunicação com o teatro e o cinema, se filiando às expressões artísticas para fortalecer o papel dos rostos clássicos do horror como porto seguro dos e historicamente rejeitados.

A submissão ao desejo carnal, que mesmo controlador liberta ao oferecer uma das passagens mais fantasiosas do curta-metragem.

Fontes:

http://jornalismojunior.com.br/alem-do-arco-iris-o-terror-como-fuga-da-heteronormatividade/

https://bocadoinferno.com.br/artigos/2018/12/horror-queer-quando-o-medo-e-a-baixa-representatividade/

LECOUTEUX, Claude. História dos Vampiros: Autópsia de um Mito. São Paulo: Unesp, 2001.