À Meia Noite Levarei O Seu Cinema

Aproveitando do anúncio do remake americano de À Meia Noite Levarei A Sua Alma, discuto a obra e vida de Mojica e como sua carreira foi ressignificada após a valorização internacional .

Por Lucas Morais*

Em 14 de outubro, a revista Screen Daily publicou com exclusividade a notícia de que o personagem Coffin Joe, o nosso Zé do Caixão, ganharia remakes em espanhol e inglês — o segundo, com produção do ator Elijah Wood. Muitas reações — baseadas em sabe-se lá o que — entoaram o discurso de “não valorização da nossa cultura” e “rolê aleatório”, além de um certo deboche com a tradução do nome do personagem. Uma grande ironia para quem conhece a história do criador por trás da criatura — e a história, como sabemos, sempre se repete.

Zé do Caixão nasceu em um pesadelo do diretor José Mojica Marins, que até aquele momento só havia realizado dois dramas caipiras de pouca relevância. Após transformá-lo em personagem, nem tinha a intenção de interpretá-lo, o que teve que acabar fazendo. Desde o começo Zé do Caixão era inevitável para José Mojica Marins. A estreia do personagem — e estreia do terror no cinema brasileiro — aconteceu no filme À Meia Noite Levarei Sua Alma (1964).

De alguma forma, parecia que Mojica era amaldiçoado pelo seu personagem: vendeu sua parte dos direitos de bilheteria para conseguir finalizar o filme, que foi um sucesso de público. A alma de Mojica realmente foi levada. Sendo chamado pelo nome de seu personagem, José Mojica Marins se tornava cada vez mais Zé do Caixão: atendia pelo nome dele, usava sempre roupas pretas e deixou de cortar as unhas, que no filme ainda eram postiças. Enquanto por um lado era respeitado por cineastas como Luís Sérgio Person, Carlos Reichenbach, Rogério Sganzerla e até Glauber Rocha, por outro se tornava uma figura folclórica em jornais e televisão.

O ano de estreia do terror no Brasil, ironicamente, é também o ano do golpe militar. Como era previsível, o aguardado longa seguinte de Mojica já seria afetado pelo novo governo do país: em uma audaciosa decisão do diretor, Zé do Caixão morreria pelas mãos do povo e afundaria num lago, enquanto negava sua crença em Deus, mas, para o filme não ser proibido pela Censura, a cena teve que ser dublada com o personagem se arrependendo de todos os seus pecados — e essa foi a versão lançada em 1967 do filme Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver. Mojica tentava matar sua criação sem nenhum perdão, mandando-a a um inferno — gelado e a cores — mas o arrependimento cristão imposto pela Censura levaria Zé do Caixão ao paraíso: o segundo filme da saga também foi um sucesso.

Com a morte de Zé do Caixão no filme, o que seria do futuro de Mojica? Cada vez mais conhecido pelo seu personagem, a busca do criador para se desvencilhar de sua criatura parecia arriscada: com a popularização da psicodelia no fim da década de 60, Mojica escreve um filme em que experimentos são realizados com LSD para estudar os efeitos provocados pela imagem de Zé do Caixão em um cartaz. O filme viria a ser Ritual dos Sádicos (posteriormente também chamado de O Despertar da Besta). Reforçando seu lado de criador, Mojica interpreta a si mesmo no filme, em uma ação clara de existência à parte de seu personagem, que aparece apenas em algumas cenas do longa, por meio de alucinações. Como afirma Mojica em uma entrevista para o Portal Brasileiro de Cinema (2007), pela primeira vez estava fazendo um filme de protesto, não um filme para o povão, inserindo o personagem somente para o filme ter público.

Mais arriscado do que o roteiro do filme, foi produzi-lo no ano de 1969. Com o Ato Institucional nº 5 baixado em dezembro de 1968, a ditadura vivia nova fase — que viria a ser chamada de “anos de chumbo” — e um filme com sexo, drogas, psicodelia e assombrações certamente não seguiria a conduta da “moral e bons costumes”. Ao contrário do Esta Noite, dessa vez Mojica não poderia dublar ou cortar as cenas: o filme foi completamente proibido pela Censura.

Se a carreira de Mojica pode ser definida como antes e depois de Zé do Caixão, há uma certa pausa após a proibição de Ritual dos Sádicos. Mojica se viu com dívidas da produção do filme e não teve retorno algum, além de ter tido que enfrentar total desconfiança dos produtores de cinema no seu trabalho, com receio de enfrentar outro problema com a Censura. O governo fundaria no mesmo ano a Empresa Brasileira de Filmes S.A., a Embrafilme, centralizando a verba de produções cinematográficas no país.

Para ele, os anos 70 e 80 foram marcados por programas de TV, entrevistas e aparições em tom de deboche e até tentativa de se tornar deputado federal. Além disso, Mojica aceitou trabalhos de baixíssimo nível simplesmente para poder fazer cinema. Com o personagem marcado pela brutal Censura, tentou emplacar novas criações — sem sucesso — e se viu envolvido na Boca do Lixo (local de produção de cinema em São Paulo onde uma certa rede de produtores foi criada), dirigindo pornochanchadas e até pornô explícito para faturar algum dinheiro, assinando produções como J. Avellar. Mojica havia se livrado de Zé do Caixão, mas da pior forma possível.

É após essa odisseia que os Estados Unidos entram na vida de Mojica e de Zé do Caixão. O jornalista — e biógrafo de Mojica — André Barcinski foi um dos responsáveis pelo lançamento dos filmes de Zé do Caixão no país, aproveitando a onda de relançamentos em VHS. Foi a reencarnação de Zé do Caixão como Coffin Joe. Ao contrário de sua imagem folclórica e desgastada no Brasil, a aparição de Coffin Joe encantou os fãs de cinema, sobretudo de horror.

Esses admiradores de fora do país demonstraram entusiasmo com seu trabalho, premiando e exibindo os filmes de Mojica em festivais, prestigiando a obra do diretor, que foi admirado por grandes nomes do cinema — Tim Burton, por exemplo, se disse honrado em poder conhecer Coffin Joe quando visitou o Brasil, como mostra matéria da Folha (2016). O discurso da “não valorização da nossa cultura” — apenas após reconhecimento internacional — foi entoado pela primeira vez. Como alguma forma de retribuição nacional, em 2008 Mojica conseguiu pela primeira vez a captação de recursos de incentivo para finalizar a trilogia de Zé do Caixão com a Encarnação do Demônio — pronto há quase 30 anos.

As reações são muito semelhantes com a produção do remake americano. O discurso de valorização nacional sai do mesmo país que não valorizou por muito tempo o criador do seu cinema de terror. O olhar valorizando nosso cinema, mesmo estrangeiro, pode — e deveria — ser a história em repetição dessa valorização (tardia) de Mojica para uma nova geração que ainda não o conhece. A criatura de Mojica vai encarnar na alma de um novo ator, em uma nova geração e em um novo país, mas carregando quase 60 anos de história com seu criador.

*Sobre o autor: Lucas Morais tem 22 anos, é designer, músico, artista plástico e escreve sobre cinema. Com foco em cinema brasileiro, especialmente o cinema de São Paulo, estuda desde 2020 as transições e acontecimentos históricos que levaram à criação do cinema da Boca do Lixo nos anos 60 e 70 e seu legado audiovisual até hoje.

Fontes:

AI-5 deu início aos “Anos de Chumbo” da ditadura militar; leia trecho. Folha de São Paulo, 2008. Disponível em: <https://m.folha.uol.com.br/poder/2008/12/478768-ai-5-deu-inicio-aos-anos-de-chumbo-da-ditadura-militar-leia-trecho.shtml>. Acesso em: 19 de outubro de 2021

AUTRAN, A. PUPPO, E. Entrevista com José Mojica Marins. Portal Brasileiro de Cinema, 2007. Disponível em: <http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/mojica/02_01.php>. Acesso em: 19 de outubro de 2021

BALLOUSSIER, A.V. Antes de sair do Brasil, Tim Burton se diz ‘honrado’ ao conhecer Zé do Caixão. Folha de São Paulo, 2016. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/02/1739899-antes-de-sair-do-brasil-tim-burton-se-diz-honrado-ao-conhecer-ze-do-caixao.shtml>. Acesso em: 19 de outubro de 2021

BARCINSKI, A. Finotti, I. Zé do Caixão: Maldito: a biografia. Edição. Brasil: Darkside Books, 2015.

BOLL, Júlio. Mojica criou um personagem que entrou para o folclore brasileiro, comenta biógrafo do cineasta. GZH, 2020. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/cinema/noticia/2020/02/mojica-criou-um-personagem-que-entrou-para-o-folclore-brasileiro-comenta-biografo-do-cineasta-ck6twhelq0kky01qd5cdsmtro.html>. Acesso em: 19 de outubro de 2021

DA SILVEIRA, Rafael Gavião; CARVALHO, Francione Oliveira. Embrafilme X Boca do Lixo: as relações entre financiamento e liberdade no cinema brasileiro nos anos 70 e 80. Aurora. Revista de Arte, Mídia e Política, v. 8, n. 24, p. 73–93, 2015.

DALTON, Bem. Elijah Wood’s SpectreVision to reboot Brazilian horror icon Coffin Joe with UK’s One Eyed Films (exclusive). Screen Daily, 2021. Disponível em: <https://www.screendaily.com/news/elijah-woods-spectrevision-to-reboot-brazilian-horror-icon-coffin-joe-with-uks-one-eyed-films-exclusive/5164259.article>. Acesso em: 19 de outubro de 2021

MALDITO — O Estranho Mundo de José Mojica Marins. Direção de André Barcinski e Ivan Finotti. São Paulo, 2000. (66 min.).

O Despertar da Besta (Ritual dos Sádicos). Direção de José Mojica Marins. São Paulo, 1969. (92 min.).

STANCKI, Rodolfo. Há 55 anos, nascia o Zé do Caixão. Escotilha, 2019. Disponível em: <http://www.aescotilha.com.br/cinema-tv/espanto/ha-55-anos-nascia-o-ze-do-caixao/>. Acesso em: 19 de outubro de 2021