A Robotização das identidades humanas

Como o filme “Titane”, dirigido pela francesa Julia Ducournau, aborda pautas como a desnaturalização do corpo humano e a marginalização da figura feminina através de um estonteante body horror.

Por Davi Krasilchik*

Ampliando a sua angustiante assinatura como mestra contemporânea do terror corporal — vertente que utiliza de transformações explícitas, geralmente sustentadas por grandes efeitos de maquiagem -, Julia Ducournau entrega um exótico conto sobre a maleabilidade de nossa essência e os seus contrastes com a robotização do corpo humano.

Afetada por um acidente de trânsito vivenciado durante a infância, a conturbada Alexia (Agathe Rousselle) carrega consigo uma placa de titânio em sua região neurológica e possui diversos problemas de relacionamento. Ganhando a vida como stripper em um salão de automóveis, ela convive diariamente com a objetificação feminina, e a grande maioria das conexões que estabelece com os demais acaba pendendo à violência.

Ao se envolver em uma misteriosa onda de crimes, entretanto, ela acaba conhecendo o bombeiro Vincent (Vincent Lindon), um homem atormentado pelo sumiço do filho que ocorreu dez anos antes. Usurpando a identidade do jovem desaparecido, a protagonista encontra nele uma chance de reconstruir a própria vida, e uma curiosa relação passa a florescer.

Por resgatar tópicos como a marginalização da figura feminina e a brutalização física, não demora a ficar claro que a direção expande o arcabouço de seu longa antecessor, “Raw” (2016) — conforme esclarece a breve aparição da atriz Garance Marillier, reciclando o nome “Justine” -, acrescentando a ele novas perspectivas acerca da natureza humana.

Para exemplificar as disrupções que a última está sujeita a sofrer, em sua maioria causadas por artificialização, a obra não perde tempo. Logo em sua segunda cena, por exemplo, filmada sem interrupções, a direção utiliza de enquadramentos bastante fechados e que priorizam costas, pernas e braços — em sua maioria evitando a humanização a partir de rostos — na composição do ambiente, articulando traços humanos não apenas às brilhantes latarias dos carros ali presentes como também às danças femininas ali performadas.

Temos assim um espaço visualmente apresentado a partir de uma ótica rudimentar da estrutura física, que não apenas se articula ao teor sexual do local — que converte a mulher à uma máquina de prazer — como também acaba enraizada como uma das constantes da turbulenta narrativa que segue a partir daí.

Não bastassem as falsas interações que se multiplicam dentro do centro de apresentações, fora dele os contatos que acontecem perpetuam a desumanização, seja pelo distanciamento de interesses, pela compulsão sexual ou mesmo, nos casos mais extremos, pela inversão da continuidade de uma vida humana.

É como se a natureza de Alexia estivesse determinada a uma dimensão gélida e mecanizada, desprovida de capacidade transformativa e congelada como uma sufocante carapuça sobre a própria pele. A personagem parece estar enferrujada, tal como a estrutura inferior de um carro — apresentada nos planos detalhe do enquadramento inicial — e conforme denuncia a cicatriz sobre a sua orelha.

Para além disso, tem-se o retrato da função atribuída ao campo do visível, por vezes erroneamente percebido como autossuficiente na explicação de certos fenômenos. Ducournau resgata assim o eterno debate entre razão e sensação, alertando para as consequências da formulação de pensamentos puramente guiados pelas aparências e que pouco consideram os dotes de aprimoramento interno que carregamos conosco.

É claro que tudo passa a se transformar — tal como o seu corpo, que se desnatura em inquietantes passagens que resgatam magistralmente o “body horror” — quando ela assume a identidade de Adrien, encontrando em Vincent um indicativo de que talvez sua natureza não esteja exclusivamente destinada ao incendiar de laços.

Se, por um lado, o pai atormentado aparenta ser seu completo oposto, especializado no combate à incêndios, é muito inteligente a maneira como Julia utiliza a interpolação de cenas para unificar as duas figuras. Presa e sufocada por seu próprio corpo, que a cada instante parece se desfazer, a protagonista encontra uma presença incapaz de aceitar o fim de seus anos de glória, e que investe em arriscados procedimentos médicos para a extensão supranatural de seus dotes físicos.

A partir daí os dois passam a investir em um comovente relacionamento, no qual trabalham a desconstrução não apenas de alguns papéis de gênero — que rendem paralelismos ótimos entre a cena do salão automotivo e uma celebração na base do corpo de bombeiros, entre outros -, como também de questões que tangem a própria identidade daquelas figuras e a maneira como as mesmas se relacionam com o mundo.

Nesse viés, é chamativa, por exemplo, a passagem que registra um devastador incêndio florestal, cuja fumaça obstrui segmentos do aspecto da imagem — unificando personagem e espectador — e desafia Vincent a se reconectar com o meio ao seu redor por intermédio da dissolução da fumaça.

Desse modo, é estonteante o exercício de horror que Ducournau realiza para abordar algumas das dimensões da nossa grande complexidade. Para isso, utiliza principalmente de um horror mais explícito — que, em um dos únicos defeitos da produção, acaba muito espaçado ao longo da duração, nem sempre incorporado a sua unidade estilística — mas que jamais deixa de abordar nossos traços mais internos e psicológicos.

Em um trabalho que deve deixar cineastas como David Cronenberg — cujo inesquecível “Crash” (1996) também já explorava, de maneira igualmente intensa, a metamorfose entre o homem e o objeto — bastante orgulhosos, a diretora reforça a sua presença no gênero do terror e concede uma surpreendente declaração sobre a desnaturação do corpo humano. Uma experiência angustiante, que atenta para os ameaçadores fatores que convertem a pele e os tecidos que nos revestem a serem estáticos e nos proíbem de atravessar necessárias transformações.

Sobre o autor: Davi Galantier Krasilchik é estudante de Cinema da Fundação Armando Álvares Penteado. Desde pequeno é apaixonado pela Sétima Arte e procura viajar para os mais diversos universos através dos filmes. Seu maior sonho é se tornar um contador de histórias, assim como aqueles que o inspiram diariamente.