Em seu terceiro longa-metragem, Jacques Rivette se desvencilha das lógicas de produção em busca de um cinema de contraste das palavras
Pedro A. Vidal
Parece que falo em enigmas, mas algumas coisas só podem ser contadas em enigmas. (Paris Nous Appartient)
L’Amour Fou é um filme sobre o desencontro das palavras, do dito e do não dito, mas, principalmente, do ruído que surge a partir dessas variáveis. Um filme sobre o processo sucessivo de encantamento e desencantamento das palavras, do amor e da violência pelo contraste que surge a partir dos limiares desses extremismos.
Para o Belmondo corsário em Pierrot Le Fou, de Godard, há idéias nos sentimentos, para o anarquista Sébastien por sua vez, as ideias pertencem a um grupo de palavras: em L’Amour Fou, a palavra é sentimento, no seu sentido mais radical possível.
A Nouvelle Vague rapidamente assimilou a teoria de Marshall McLuhan, só que na linguagem cinematográfica a mise en scène é que é a mensagem, mas o que fica do ruído? Jacques Rivette parece tentar responder essa resposta com L’Amour Fou: “ser ouvido sem gritar” diz o personagem de Jean-Pierre Kalfon, au contraire, no filme de Rivette se grita muito e se ouve pouco.
A fita acompanha uma adaptação de Andromaque de Jean Racine por uma companhia teatral, o diretor Sébastien (Jean-Pierre Kalfon) lentamente negligencia sua relação com Claire (Bulle Ogier) à procura de outros vícios, como a traição e o ócio. À medida em que os atores ensaiam a peça de Racine, uma equipe de filmagem documenta os processos teatrais em palco. Rivette interliga essas duas seções narrativas utilizando 35mm nas filmagens para a primeira e 16mm para a segunda.
O realce do ruído dos fotogramas nesses processos de ampliação e redução — algo inclusive similar ao que Júlio Bressane faz em O Anjo Nasceu — resulta em um estudo da micrologia do grão. O agrupamento ruidoso em cada fotograma ressalta os movimentos de câmera durante os diálogos, a arquitetura dos espaços e dos enquadramentos mas, sobretudo, a saturação temporal da teatralidade.
São nesses aspectos que reside um desejo constante do meio cinematográfico de invadir o quadro com extrema violência, em cada corte, cada transição do palco para o apartamento, nas nuances repentinas de tom e potência. Há uma espera constante da explosão ocasional do filme de fora pra dentro do quadro, a (des)construção da mise en scène promete um novo abismo a cada corte.
É precisamente nessa permutação de contrastes que se encontra a mistificação da mise en scène de L’Amour Fou. Em um dos planos mais enigmáticos do filme, provavelmente o que marca a metade do tempo de duração da película, a câmera foca e desfoca lentamente em um grupo de cadeiras: uma pausa intencional, da interrupção de significado, como se no momento que você inventasse movimentos eles imediatamente caíssem por terra. São esses processos de concepção cinematográfica que moldam L’Amour Fou como um ato performático.
Nas situações arquetípicas vividas pelos personagens, a atuação, seja a de Jean-Pierre Kalfon ou de Bulle Ogier, também surge como performance. “Conheço diretores que deixaram a peça ser feita pelos atores. Em seguida, eles vão dormir”, é o caso de Rivette, é na direção da entonação do texto e na pausa entre as falas que Rivette se consagra como o mais teatral dos autores, talvez até mais que John Cassavetes e Orson Welles.
“O que eu queria desde o início era precisamente que os atores tivessem ideias próprias, que saíssem verdadeiramente deles” diz Sébastien (ou o próprio Rivette). Fazer com que a expressão do ator nasça de livre e espontânea vontade, o abrir-se ao improviso, que passaria a ser característico na carreira de Rivette — Paris Nous Appartient e La Religieuse ainda eram filmes muito rígidos — é levado em L’Amour Fou à ruptura.
Pois à medida em que essa performance da proporção depreciativa da relação amorosa do casal se engendra em um ciclo de autodestruição, mais violento é o controle das elipses; maior é a procura constante pelo ritmo da frase pela dilatação teatral da peça. Como se os diálogos de ambos os blocos não existissem e só passassem a ser porque se alimentam de si próprios.
L’Amour Fou é então um marco temporal na filmografia de Rivette, em que os limites da ficção com a realidade em seus filmes já não são mais tão distinguíveis. Em que a arte e a vida não apenas se fundem, mas se sobrepõem pela constante improvisação num processo de preocupação e despreocupação com a mise en scène. Sendo assim, a adaptação de uma tragédia francesa clássica (a arte) se sobrepõe à decadência moral de um casal pós-maio de 1968 (a vida), com ambos tornando-se o espelho do outro.
Nesse aspecto, dá pra se dizer que L’Amour Fou é o irmão mais velho de La Maman et la Putain, de Eustache: as paredes do apartamento de Sébastien e Claire gritam morte à la france pela desilusão pessimista com o maio de 1968; “você não parece muito com um diretor” em uma revisão crítica da politique des auteurs. São filmes-irmãos que antecipam a morte declarada da Nouvelle Vague por Le Diable Probablement, de Bresson. Curioso que, possivelmente por coincidência, nesses dois anos seguidos, ambas as restaurações dos filmes constassem na programação da Mostra de São Paulo.
Como o crítico Jonathan Rosenbaum nota: cada filme de Rivette tem seu lado Eisenstein/Lang/Hitchcock, em um impulso para designar a trama, dominar e controlar; e seu lado Renoir/Hawks/Rossellini, em uma força para abrir-se para o jogo de poder de outras influências e observar o que entra no quadro por acaso. Acontece que L’Amour Fou se encontra justamente no limbo desses dois lados e por isso talvez seja o melhor dos equilíbrios entre eles.
É um filme que se situa logo depois de Rivette ter feito La Religieuse e Jean Renoir Le Patron. A religiosa de Anna Karina é um filme calculado, de grande orçamento, mas que ainda procura por uma linguagem própria dos sentidos. Um filme muito mais rigoroso que Paris Nous Appartient, que por sua vez ainda buscava por um jogo caótico da perdição de insanidade dos personagens. No final, La Religieuse não agradou seu autor pelos excessos burocráticos que a tecnização do meio industrial cinematográfico exige. Como que por meio dos ensinamentos de Renoir, no documentário da série Cinéastes de Notre Temps, acende-se uma nova fagulha na obra de Rivette, em que o autor passa a buscar por uma maior liberdade de controle nas produções de baixo orçamento.
Enquadrando a violenta romantização metódica de seus atores em longos planos seja na ruína do casal ou na adaptação de Racine, Rivette transforma a teatralização da vida em busca de faíscas de magia metafísica na fricção que resulta quando a palavra encontra as puras abstrações de espaço e tempo. Para finalizar com as palavras do próprio autor, Rivette faz a seguinte declaração sobre L’Amour Fou, em uma entrevista na edição 204 da Cahiers du Cinéma de setembro de 1968.
“Um cinema que não impõe nada, em que se tenta sugerir coisas, deixá-las acontecer, que é principalmente um diálogo em todos os níveis, com os atores, com a situação, com as pessoas que você encontra, em que o ato de filmar faz parte do próprio filme. O filme em si é apenas o resíduo, onde espero que algo permaneça. O que foi emocionante foi criar uma realidade que começou a ter uma existência própria, independentemente de estar sendo filmada ou não, e tratá-la como um evento sobre o qual você está fazendo um documentário, mantendo apenas certos aspectos dela, certos pontos de vista, de acordo com o acaso ou com suas ideias, porque, por definição, o evento sempre supera em todos os aspectos a história ou o relato que se pode fazer dele. O fato de que em algum momento havia uma câmera na frente de algumas pessoas, o que as fez agir de certa maneira, e tudo o que elas possam ter pensado, dito ou feito naquele momento não tem mais importância. Isso já passou; a única coisa que importa é o que permanece, e o que permanece é uma cristalização disso. É o momento em que você passa da fase da realidade bruta gravada para as dimensões de um filme: esse é o ponto em que você tem a maior responsabilidade, porque é nesse momento que o filme — quer você goste ou não — começará a ‘dizer’ algo. Mas ele mesmo deve dizê-lo, não eu nem ninguém.”
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