Com sua presença dupla na 47ª Mostra, os filmes do documentarista chinês Wang Bing exploram a performance cinematográfica em chaves diametralmente opostas, mas complementares
Felipe Palmieri
Em seu estudo sobre a relação entre a forma documental e a noção de performance, a pesquisadora Elizabeth Marquis elabora um sistema que determina três fontes para o trabalho do ator não-ficcional. A primeira seria aquilo que advém de atividades performáticas no dia-a-dia, e está diretamente ligada ao tipo de pessoa que está sendo registrada. A segunda diz respeito à influência que a presença da câmera exerce sobre o sujeito documental, que pode ser analisada tanto através da interação entre ambos quanto da negação. A terceira se relaciona a dinâmicas documentais específicas, ou seja, situações orquestradas para os sujeitos pelo próprio projeto fílmico. O trabalho do cineasta chinês Wang Bing é um objeto primoroso para a aplicação destes paradigmas.
Levando em conta apenas seus dois trabalhos mais recentes — Juventude (Primavera) e Homem de Preto, ambos de 2023 —, pode-se enxergar a maneira como o documentarista toma consciência do âmbito performático documental. Os trabalhos, na verdade, mal parecem obras de um mesmo autor, pois os filmes se contrastam ao extremo — justamente pela abordagem contrária quanto à interpretação. Em Juventude (Primavera) tudo é natural, a presença do cinema é velada na espontaneidade aparente das pessoas em tela. No entanto, a existência de Homem de Preto permite-nos enxergar o oposto: revela-se a presença do cineasta através do controle, transparecendo a manipulação em cada ação do protagonista.
O primeiro é uma realização mais em linha com elementos clássicos da obra do diretor, conhecido pela longa duração de seus filmes, e se encaixa nas diretrizes pormenorizadas pelo autor Bruno Lessard: “(…) o enfoque é na maioria silenciosa da população chinesa, cujo futuro sócio-econômico continua incerto e tem sido ignorado pela mídia e pela história oficial. Enquanto milhões de chineses foram tirados da pobreza, muitos outros ainda esperam pelos benefícios das reformas. Eles são o cerne do cinema de Wang Bing”.
Juventude (Primavera) — em suas mais de três horas — dá enfoque a jovens trabalhadores, todos migrantes, empregados em fábricas têxteis de condições precárias. O filme acontece por causa deles e através deles, sem que haja um direcionamento claro por parte do documentarista. Os personagens representados apenas seguem suas rotinas, enquanto são acompanhados por um câmera invisível, que nos permite a visão privilegiada e imperceptível de um inseto grudado à parede. No entanto, inexiste o aparato que possibilita ao cineasta captar tais momentos sem ser visto pelos sujeitos — e caso existisse, a moralidade de tais imagens seria questionável. Por essa razão, ao longo do filme, explicita-se o ato da comunidade retratada de ativamente ignorar a câmera.
Do outro lado está Homem de Preto, que não entra em linha com nada que fora descrito até aqui. É um longa de curta duração, com pouco mais de uma hora, e tem como objeto alguém distante da classe trabalhadora chinesa: o compositor Wang Xilin. Além do assunto distinto, a abordagem também se altera. Indo mais a fundo na sensação de invisibilidade, Wang Bing incorpora trechos plenamente ficcionais, que complementam a artificialidade cristalina da situação: Xilin, nu, sendo filmado em um teatro vazio.
O filme se inicia com uma sequência na qual o protagonista, completamente exposto, caminha pelas fileiras do teatro desabitado até chegar em um palco central, onde ele passa a repetidamente reverenciar uma audiência invisível. Fazendo isso para todos os lados do palco circular, com holofotes o iluminando e reforçando ainda mais seu desamparo, a ideia de performance se manifesta de imediato. Xilin ignora a câmera tal qual fazem as pessoas de Juventude (Primavera), mas aqui o fundamento de seu agir é descaradamente antinatural.
Ao conceituar tal relação, podemos entender a linha direta entre os filmes, oculta apenas pelo quão naturalista é a forma em cada projeto. A performance em Homem de Preto é evidente, e incorpora em si muito da 3ª instância proposta por Marquis: induz o agir do personagem a partir de situação que se propõe. O compositor nu em um teatro vazio é uma imagem quase autoexplicativa — ao ponto de parecer que o filme foi feito exatamente para chamar atenção ao tópico da atuação.
Porém, mesmo sem considerarmos Homem de Preto uma peça complementar, Juventude (Primavera) ainda permite que a ideia de performance surja de si. A juventude trabalhadora é representada por muitas faces e lugares, porém, todos estão sob condições muito semelhantes. Dessa forma, a incessante repetição de contextos tira um pouco o foco do carisma individual de cada pessoa, direcionando nossa perspectiva para a única constante concreta: a câmera. O 2º paradigma descrito por Marquis é a essência do filme, na maneira como se aponta uma relação de causalidade entre a presença da filmadora e o agir dos personagens.
Essa ideia nos leva a uma cadeia infinita de consequências, a um vínculo inescapável entre documentário e performance. Parece contraditório, ainda mais ao se enxergar um corpo de trabalho tão puramente documental quanto o de Wang Bing — à exceção de Homem de Preto — no entanto, uma conhecida frase de Jean-Luc Godard expressa bem este elo: “Todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, assim como todos os grandes documentários tendem à ficção (…) E quem opta a fundo por um encontra necessariamente o outro no fim do caminho”. O ato de explicitar, em seu curto longa-metragem, essa causalidade, aparenta ser a forma de Wang Bing se demonstrar consciente do que sempre esteve ali.
Referências Bibliográficas:
BONIN, Pedro Henrique Pezzella. Produção Audiovisual em Pesquisa Qualitativa: Uma Referência na Obra de Eduardo Coutinho. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.
LESSARD, Bruno. The Cinema of Wang Bing. Hong Kong University Press, 2023.
MARQUIS, Elizabeth. Conceptualizing documentary performance. In: Studies in Documentary Film. Vol. 7, No. 1, 2013.
Felipe Palmieri é estudante de Cinema na FAAP. Absolutamente fascinado por todas as pluralidades e sutilezas que a linguagem cinematográfica é capaz de abrigar, e pelas infinitas perspectivas que foram e serão materializadas através disso.