Em debate durante o Festival É Tudo Verdade, o cineasta Sérgio Tréfaut conversa com Anna Glogowski sobre as filmagens e fotos de Portugal após a derrubada do salazarismo
Eduardo Lima
Tudo começou com uma canção, como explicou Anna Glogowski, brasileira que trabalha com cinema e televisão na França desde a década de 1970 e foi para Portugal em 1974. A Revolução dos Cravos, que completa 50 anos no dia 25 de abril, começou com protestos contra a Guerra Colonial Portuguesa e terminou com a derrubada do Estado Novo, regime ditatorial que António de Oliveira Salazar inaugurou em 1933.
Em homenagem aos 50 anos do movimento popular e militar (lá, as Forças Armadas ajudaram a derrubar a ditadura, conceito que pode parecer estranho a nós, brasileiros) que acabou com o Império Português e iniciou a transição para a democracia, o festival de documentários É Tudo Verdade organizou uma conferência com debate entre Anna Glogowski e Sérgio Tréfaut, cineasta de pai português e mãe francesa que nasceu em São Paulo e dirigiu o principal filme sobre a Revolução dos Cravos, Outro País, de 1999.
A ideia para o filme, como explica Sérgio, que hoje mora no Rio de Janeiro, nasceu da tentativa de realizar uma exposição com a obra de fotógrafos internacionais documentando o 25 de Abril e todas as manifestações que levaram a democracia a Portugal. Enquanto a exposição não conseguiu sair do papel até hoje (2025 promete, diz Sérgio), ele usou o trabalho de pesquisa fotográfica e audiovisual para fazer um filme mostrando a Revolução dos Cravos pelas lentes dos cineastas e fotógrafos que foram para Portugal ver o bloco da liberdade na rua. Exilados do Chile e do Brasil, ambos debaixo de ditaduras, e outros influenciados pelo Maio de 68, os artistas inspirados pelo sopro de liberdade foram para as ruas junto dos manifestantes.
Esse “engarrafamento de cineastas nas manifestações”, que Anna presenciou e recontou no evento, resultou em diversos filmes, muitos deles reaproveitados em Outro País. Enquanto a maioria dos que estavam ali concordou em realizar um cinema observacional, alguém destoou do resto do grupo: Glauber Rocha, que saiu entrevistando as pessoas na rua e quase ralhando com aqueles que não estavam tão empolgados com a revolução.
Enquanto sonhadores do mundo todo se reuniam para gravar a Revolução dos Cravos, Anna Glogowski e seu marido, Philippe Constantini, foram para o interior de Portugal encontrar outro país, que não tinha nada a ver com as manifestações em Lisboa. O legado do salazarismo está em Terra de Abril, filme que eles lançaram em 1977 e que mostra a vida rural portuguesa, com seu analfabetismo de 34% da população e uma situação econômica e comercial completamente isolada do resto da Europa, sem nem uma lata de Coca-Cola.
A mesa para relembrar a Revolução dos Cravos chega duas semanas antes do aniversário do evento e quase duas semanas depois do aniversário de 60 anos do golpe que instituiu a ditadura militar no Brasil. Enquanto os portugueses celebram sua libertação do jugo violento do autoritarismo, os brasileiros não podem nem sequer relembrar oficialmente, com ações do governo, o período de trevas que viveram. O cinema está aí para não nos deixar esquecer da barbárie, com a autorização dos poderosos ou não.