“A Saída é o Mal!” Encantaria e Desencanto no Anti-Brasil de Sem essa, Aranha (1970)

Como Sem essa aranha se transforma em experiência mística de celebração dos aspectos artístico-culturais e contrariedades de um país em desencanto

Por Luizi Lopes

Sem essa aranha (1970) de Rogério Sganzerla é o primeiro filme que me vem à mente quando penso sobre Brasil e sobre o que é ser brasileiro. Para além da premissa narrativa do banqueiro Aranha (José Loredo), suas três mulheres (Helena Ignez, Maria Gladys e Aparecida) e a caricatura de uma burguesia nacional, esse filme atinge por todas as partes, todas as pontas. O próprio tridente do diabo.

A câmera ali orquestra um ritual. Cada plano-sequência mostra e arranca a casca de uma das nossas feridas como filhos desse dito “terceiro-mundo”. Essas feridas coexistem em forma de delírio. Um transe religioso entre súplicas, vômitos e reflexões profundas sobre o significa ser brasileiro e suas contradições.

“Não se sabe ao certo se ele crê ou não. Se Deus repentinamente escarra sangue, enquanto a Virgem se entrega a certo húngaro por algumas peças de metal amarelo.” Helena Ignez induz o vômito no parapeito de uma janela em frente ao infinito mar do Rio de Janeiro após ler esse trecho de Leon Trotsky. Poucos segundos depois a voz de Luiz Gonzaga cantando começa soar ao fundo.

Luiz Gonzaga, uma entidade importantíssima quando pensamos nos possíveis conceitos e definições de uma “brasilidade”, nesse filme se torna de fato uma entidade nas definições espirituais: uma figura a cumprir função ritualística específica dentro dessa grande liturgia.

Ele conduz nossos personagens em uma caminhada ao final do filme que se assimila à uma procissão. No percurso, ele lança uma denúncia que ao ser ouvida hoje soa como profecia: “Não sei se já perceberam, mas estamos vivendo um momento de anti-brasil. Não sei o que vai acontecer, nem onde vamos parar…”

Um filme lançado há mais de 50 anos que retrata o exato presente. Sobretudo se pensarmos no atual presidente e seus seguidores, tudo o que vociferam e representam temos a materialização concreta desse anti-brasil. Um país que odeia as suas múltiplas manifestações culturais. Um país que repudia a sua própria arte. Sua intelectualidade. Seu povo. (1)

“São seis mil anos de fome” — Aranha diz. A personagem de Maria Gladys passa o filme inteiro aos berros por conta da dor de barriga ocasionada pela fome. Com a ascensão da insegurança alimentar no Brasil e a volta do país ao mapa mundial da fome, mais uma vez o cenário cinematográfico não parece estar tão distante. (2)

São inevitáveis as relações com o contexto atual — que não é exatamente o objetivo desse texto — mas que penso servir como marcador fundamental para uma reflexão relacionada ao nosso movimento (3) como “sociedade nacional”.

O que mais me impacta na experiência de assistir esse filme é a sensação de que tudo se desenvolve como um antigo pesadelo que se repete. Uma experiência mística e onírica. Entre os diferentes cenários existe um mesmo torpor enfeitiçando os personagens. Um quebranto. “Somos um sonho que precisa ser destruído.”

A penumbra dos cabarés, os barrancos, as vielas, o corpo nu das dançarinas. Tudo ali é matéria de feitiço e contra-feitiço. Benção e Maldição. Um maniqueísmo simbólico que ilustra o familiar “Sagrado e Profano”. E é por meio da profanação que a hierofania acontece nesse filme.

Em um país onde a razão já não habita, todos os objetos são dignos de violação. “Eu sou um médium abandonado por seus espíritos…” O impulso pelos sacrilégios e pela violência não pode ser reprimido. “É preciso pecar em dobro pro planeta não virar de pernas pro ar…”

A crise identitária do povo brasileiro, sua tristeza, raiva e repulsa em ver o próprio país dobrando-se em devoção ao imperialismo norte-americano vai dando espaço para um crescente pessimismo em clima de Zeitgeist tropical.

“Não vejo inconveniente algum que o mundo acabe já. Nossa época é sem pavor algum a pior das épocas. Isto aqui não é mais Brasil, pensamos que certas coisas não aconteceriam aqui. o terrorista quer fazer do brasil o anti-brasil e do brasileiro o anti-brasileiro. Antigamente os canalhas inescrupulosos faziam suas sujeiras longe dos outros, jamais para uma assistência de fla-flu. Hoje o canalha joga pombas à torta e a direita.”

E a solução apontada por vários personagens para o nosso país é justamente a representação imagética do pecado: O diabo. Essa figura entra como a única fórmula para desobstruir os caminhos do nosso Brasil. É Ele — o senhor dos portões — que estabelece a interlocução entre o nosso mundo material e o reino sagrado.

“Já sou do Diabo…Só o Diabo é que topa quimbanda…Hoje eu vendo a alma ao demônio…a saída do brasileiro é essa por enquanto (…) Chamai todos os espíritos do Mal… Mas eu não quero nada com Deus…Quero é com o Diabo! Todos nós brasileiros precisamos é do Diabo…A saída é o mal…”

É interessante pensarmos que malefício pode ser feito em um país já desencantado. Em um país que não se encontra na página, que está fora do mapa — fazendo alusão a marcante cena em que Helena Ignez e Maria Gladys procuram onde se localiza o Brasil, sem encontrá-lo.

A própria questão da busca de uma identidade nacional e sua afirmação — que não é uma ferida exclusiva do Brasil, mas da América Latina como um todo — se relaciona diretamente com as questões fáusticas sobre poder e ética e como a última sucumbe diante de regimes totalitários.

Há muitos aspectos nesse filme para se pensar e ressaltar, mas a magia hipnótica que reside nele se encontra nessa encruzilhada de proposições que se projetam para fora da tela e repercutem até hoje no terreno de feitiços que é o solo brasileiro.

O cinema nacional não deve ser encarado aqui como um mimetismo da nossa realidade e sim como um instrumento para fugir desse movimento anti-Brasil. Celebrando nossos próprios aspectos artístico-culturais, elucidando nossas contrariedades.

Se a nossa única escapatória para esse labirinto de encantamentos e controvérsias é o diabo, retomemos a nossa afinidade machadiana com ele e pensemos como Riobaldo, nosso Fausto brasileiro de Guimarães Rosa “O que não é Deus, é estado do Demônio. Deus existe mesmo quando não há, mas o Demônio não precisa existir pra haver — a gente sabendo que ele não existe, aí que ele toma conta de tudo.”

(1) Temos aqui uma série de declarações do presidente que expõem essa concepção. Não podemos esquecer disso nunca. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/01/veja-falas-preconceituosas-de-bolsonaro-e-o-que-diz-a-lei-sobre-injuria-e-racismo.shtml

(2) “Com Bolsonaro, o Brasil voltou ao mapa da fome” de José Guimarães https://www.cartacapital.com.br/opiniao/frente-ampla/com-bolsonaro-o-brasil-voltou-ao-mapa-da-fome/

(3) Escolho essa palavra por acreditar ser a mais adequada em substituição a desenvolvimento, progresso, ou qualquer coisa que ilustre a ideia de uma linha evolutiva.

*Sobre a Autora: Luizi Lopes é formada em Antropologia Social e Cultural pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com ênfase de pesquisa em Mitologia, Etnologia, Cultura oral e intersecções com estudos de gênero.