As Raízes do Cinema de Júlio Bressane

Como o início de carreira do diretor indicava uma trajetória divergente da que o tornou conhecido

Por Felipe Palmieri*

Júlio Bressane carrega consigo uma premiada e pouco usual filmografia. Ainda hoje Bressane é ativo, mesmo tendo começado na metade da década de 60, quando se tornou rapidamente um dos mais icônicos nomes do cinema nacional. Em 1970 foi um dos fundadores da produtora Bel-Air (ao lado de Rogério Sganzerla), a qual marcou o movimento do Cinema Marginal tanto pela acelerada produção de filmes como pela curta duração de sua existência, fechando em maio do mesmo ano.

O diretor atravessou diversas fases ao longo da carreira, divergindo da imagem “marginal” atrelada aos seus filmes de maior sucesso. Indo do poético ao ensaísta, o período mais frequentemente negligenciado da trajetória de Bressane como cineasta é o próprio início.

Um dos mais importantes cineastas brasileiros vivos, Júlio Bressane participou de uma produção cinematográfica pela primeira vez como assistente de direção no primeiro longa de Walter Lima Júnior, Menino de Engenho (1965). Sua inserção no mundo do cinema foi concomitante temporalmente com o início da ditadura militar no Brasil, mais especificamente tratando do governo de Humberto Castelo Branco, que durou de 1964 a 1967.

O período já ostensivamente analisado era tanto marcado pela repressão e austeridade militar tanto como pela tentativa de manutenção das aparências, sendo até mesmo nomeado pelo jornalista Elio Gaspari como uma “ditadura envergonhada”, característica evidenciada na mudança de governante a cada 5 anos mesmo sob uma ditadura. Durante tais anos, o veio adotado por muitas artes foi de denúncia às ações violentas e autoritárias do governo — postura essa que viria a levar à forte censura instaurada futuramente.

Nesse contexto emergem os movimentos de contracultura que desafiavam as políticas culturais vigentes, tanto no Brasil como em diversos outros países. Essas manifestações culturais permearam o mundo das artes como um todo, e o cinema não foi diferente. O Cinema Novo, o qual dialogava fortemente com outras vanguardas cinematográficas mundo afora, era encabeçado em nossas terras por nomes como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Joaquim Pedro de Andrade.

Mesmo antes da ditadura, o Cinema Novo já era realidade e influenciava a estética e a noção do que era a produção cinematográfica brasileira. Com a tomada do poder pelos militares no golpe de 1964, a força política do Cinema Novo diminui, e as diretrizes estéticas mais “intelectualizadas” que estavam sendo tomadas pelo movimento passam a dar lugar a filmes mais diretos e populares.

Bressane então consegue a oportunidade de realizar dois curtas-metragens documentais que o colocariam como um artista emergente no cenário audiovisual brasileiro, sendo estes: Lima Barreto: Trajetória e Bethânia Bem de Perto — A Propósito de um Show, ambos de 1966. O destaque veio principalmente através do filme sobre Maria Bethânia, que possibilitou um olhar intimista e verdadeiro para o início da carreira de uma das artistas mais populares de seu tempo.

O filme que interpola imagens de Bethânia se apresentando com circunstâncias de descontração, e além de salientar muito do diálogo entre cinema e música que o período exacerbou, veio em tempo perfeito: logo quando a cantora estava em seu auge de fama. Com a notoriedade conquistada, Júlio Bressane pôde realizar um projeto mais ambicioso, que se materializou no longa-metragem Cara a Cara de 1967.

Antero de Oliveira esguiando-se pelas ruas em Cara a Cara

O filme, primeiro longa tanto como primeiro empreendimento do cineasta no âmbito ficcional, narra uma história sobre conflito de classes que dialoga em autocrítica com a “falha” política do Cinema Novo. No entanto, a estética e abordagem do filme ainda muito se encaixam na do movimento.
Acompanhamos no filme a relação de Raul (Antero de Oliveira) que se interessa pela abastada Luciana (Helena Ignez). Adentramos na história pelo protagonista, um melancólico servidor público, na justaposição entre as rotinas de um trabalhador de classe média sem perspectiva e da filha de um político bem de vida. A política envolvida na encenação inclusive é um dos maiores indícios da influência do cinema novo na obra, não apenas pela mera existência na narrativa, mas sim pela maneira com que foi representada. Cara a Cara segue retratando a crescente obsessão de Raul com Luciana, mesmo que ainda sem sequer terem entrado em contato.

A progressão do filme é quase padronizada em cenas que acompanham Raul, depois Luciana e então a trama política que permeia a obra. Essa dinâmica se repete durante toda sua extensão, e serve para salientar no ápice do filme a inevitabilidade da situação concebida, e não apenas enviesada pelo lado de Raul, mas de todos os envolvidos.

Cena de políticos discutindo em Cara a Cara

A apresentação das rodas de discussões de poder aqui remetem fortemente às cenas de Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha, e demonstram o aspecto principal em que Cara a Cara quebra com a eventual filmografia de Bressane: que é um filme essencialmente do Cinema Novo. A maneira discursiva com que se desenrola a narrativa adota o lado mais experimental da produção do Cinema Novo, cimentando-se como parte do cinema moderno que era produzido em tal contexto.

Porém, há relances que destoam um pouco dessa essência, como a sequência final que é tematicamente muito coerente com os rumos cinematográficos que o diretor viria a seguir. Então, apesar do escopo geral ainda parecer indicar uma inserção maior no movimento de Glauber Rocha, sabemos que o que seguiu foi uma grande digressão. Ao lado do cineasta Rogério Sganzerla, Bressane foi um dos pioneiros do Cinema Marginal com filmes como Matou a Família e Foi ao Cinema (1969) e O Anjo Nasceu (1969), os quais elevam as digressões de Cara a Cara ao máximo e pavimentar um caminho próprio.

No entanto, apesar da divisão historiográfica rígida entre Novo e Marginal, o caminho entre ambos movimentos foi fluído e entrelaçado. Dessa maneira, Bressane se salienta como um espelho das transições e trocas que ambas estéticas poderiam possibilitar. Como destacou o teórico Jean-Claude Bernardet, em seu seu artigo “Cinema marginal?” publicado pela Folha de São Paulo em 2001, Cara a Cara foi recebido pela crítica da época como parte da nova onda do Cinema Novo, e apenas mais tarde com a contextualização da carreira de Bressane que se categorizou o filme de outra maneira.

Contudo, mesmo com as raízes similares apontadas por Bernardet, pode-se entender que de certa forma o Cinema Novo está para MPB assim como o Cinema Marginal está para o Tropicalismo. E logo o veio muito mais escrachado e cômico viria a ampliar a distância entre as estéticas cinematográficas, com cada identidade própria construindo mais sobre si mesma ao passar dos anos — e, por consequência, dialogando menos com outras. Demarca-se então nas obras iniciais de Bressane um interessante momento, em que a estética de Cara a Cara reflete tanto as mudanças e adaptações que estavam sendo adotadas pelos cineastas do Cinema Novo, quanto as premonições de um tipo de cinema que ainda viria a ser, na estética Marginal.

*Sobre o autor: Felipe Palmieri é estudante de Cinema na FAAP. Absolutamente fascinado por todas as pluralidades e sutilezas que a linguagem cinematográfica é capaz de abrigar, e pelas infinitas perspectivas que foram e serão materializadas através disso.

FONTES:

BERNARDET, Jean-Claude. Cinema marginal?. Folha de S. Paulo, São Paulo, domingo, 10 de junho de 2001. Disponível em:<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1006200107.htm>.

DAEHN, Ricardo. Júlio Bressane, aos 75 anos, é homenageado por mostra do Canal Brasil. Correio Braziliense, 14 de maio de 2021. Disponível em:<https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2021/02/4906689-julio-bressane-aos-75-anos-e-homenageado-por-mostra-do-canal-brasil.html>.

VASCONCELOS, Cid. Filme do Dia: Cara a Cara (1967), Júlio Bressane. Blog Magiadoreal, 30 de abril de 2016. Disponível em:<https://magiadoreal.blogspot.com/2016/04/filme-do-dia-cara-cara-1968-julio.html>.