O desmonte do formalismo cinematográfico pela valorização do impulso conforme o último filme de John Cassavetes
Davi Krasilchik
INTRODUÇÃO
São muitas as esferas residentes de análise a respeito da construção dos códigos cinematográficos. Do surgimento da Sétima Arte à compreensão cada vez mais elaborada das maneiras que a imagem poderia ser utilizada, múltiplas formas de se organizar as impressões deixadas pela alternância entre planos foram desenvolvidas. Consonante com as demais formas de manifestação artística, é interessante pensar no surgimento de práticas que investem na negação de outros formatos convencionalizados pelo tempo.
Talvez a dimensão fílmica onde isso melhor se expresse esteja na mise-en-scène, ou seja,n a maneira como é articulada a coesão entre todos os elementos do quadro em tela, da disposição dos objetos cênicos à lógica de comportamento dos atores sendo filmados. Se pensarmos esse processo em uma chave hollywoodiana, houve um entendimento gradual de que o sujeito por detrás da lente poderia controlar cada vez mais essa administração, rompendo com a realidade através de um manejo fantasioso.
Na chegada da Nova Hollywood, movimento que introduziu um revisionismo às normas estabelecidas pelos grandes estúdios da época, duas vertentes gerais, dentre outras mais específicas, se fundamentaram. Se por um lado nomes como Mike Nichols, Martin Scorsese e Francis Ford Coppola se dedicaram a modernizar as formas cristalizadas, encontrando em uma evidenciação metalinguística uma nova forma de guiar a artificialização cinematográfica, outros optaram por uma espécie de “retrocesso” realizado de maneira mais independente, dedicados a redescobrir a primitividade que levaram à captura de imagens em movimento em primeiro lugar.
Seria injusto, entretanto, identificar o trabalho de John Cassavetes, o intitulado “pai do cinema norte-americano independente”, como uma manifestação involuída, apenas por seu descompasso estético, talvez, com a polidez dos planos maneiristas que reconhecem o passado de uma história pautada pela dimensão mais plástica. Muito pelo contrário: temos aí um diretor, que pela ânsia de retornar a uma relação ainda mais genuína entre o espectador e a tela, encontrou na desconstrução da racionalidade uma maneira de explorar um objeto invisível, mas ainda assim de interesse da câmera: o impulso; Instintos que atravessam constantemente os nossos corpos e que, dentre outros exemplos, encontram o suprassumo de sua reafirmação no último filme do diretor, Amantes (1984).
“O que faz parte do filme é se interessar mais nas pessoas do que no filme, nos ‘problemas humanos’ mais que nos ‘problemas de mise-en-scène‘, para que as pessoas não passem ao lado da câmara sem que a câmara deixe de passar do lado das pessoas.”, Gilles Deleuze, sobre o cinema de Cassavetes.
A FLUIDEZ AFETIVA DE AMANTES
Lançado em 1984, é interessante acompanhar os bastidores pessoais de Cassavetes que antecedem a realização desse, que é por muitos considerado o seu último grande filme. Não que seja novidade que as circunstâncias particulares de sua vida fundaram a sua maneira de conduzir as próprias obras, mas Amantes adquire um contorno especialmente denso se considerado que o seu autor acreditava que o projeto assinalaria não somente o fim de sua filmografia, mas também o de sua vida. Subvertendo as expectativas médicas, o cineasta viveu por mais seis anos, mas a premonição precoce que lhe assombrava contribuiu para a sua última chance de expurgar demônios próprios.
Reconhecido por uma abordagem experimental que se manifestou desde os primórdios — haja vista o improviso já bastante presente em seu longo de estreia, Sombras (1958), que não por acaso incorpora o jazz em sua tese de imprevisibilidade —, é notável o desprezo de Cassavetes pelo formalismo estrutural da narrativa e de sua conversão visual. Distantes de processamento racional na relação com a plateia, os seus filmes honram cadeias de inconsciência e jogos de pulsão que deslocam as personagens de um estado a outro, retratados por uma ótica mais interessada em tatear o emocional dessas passagens do que compreendê-las em alguma instância.
Filmado sem um roteiro fixo e utilizando por uma última vez do seu reconhecido método de improvisação, os fluxos amorosos de seu encerramento genioso fazem um claro jus dessa sua tradição, dando espaço à crônica de dois irmãos desafortunados que são levados a se reencontrar por desavenças da vida. Enquanto o condutor dá luz ao escritor Robert Harmon, um autor de best-sellers sexuais que se vê forçado a criar um filho abandonado anos antes, Gena Rowlands interpreta a sua irmã, Sarah Lawson, mãe que acaba por parar à porta de sua casa após perder a guarda da filha.
Temos aí uma premissa de vícios, erros e descuidos que acabam reunindo membros de uma mesma família, dilacerados pelas escolhas irracionais de suas vidas, e que lhes obrigam agora a tentar compreender de que forma a disrupção do amor os conduziu a tal resultado. Honrando as condições dos experimentos humanos praticados pela direção — que sempre buscou, na criação de obras de baixo orçamento ao lado de amigos e familiares, laço cuja maior evidência se encontra no casamento com Rowlands —, Cassavetes encontra uma nova maneira de trabalhar com motivações tão primitivas quanto universais, livre para explorar a dualidade de personagens aprisionadas entre a complexificação de sua psicologia e o seu reducionismo como meros invólucros de instintos e pulsações.
Nesse sentido, cabe em primeiro lugar entender o medo da própria finitude como uma das forças motrizes de Amantes. Constituído pelo arremedo de variadas situações que despontam para a desordem — seja essa a dos arranjos convencionais de uma família, da moralidade duvidosa de seus protagonistas ou da concepção estrutural da narrativa e dos próprios enquadramentos —, o longa dialoga, e especialmente na apatia de seu desfecho aberto em que acompanhamos Harmon deixando a sua casa após rir isoladamente, com a turbulência gerada em função desse temor.
A volatilidade iminente de um estado dinâmico para outro de cessão permanente parece ser um motivador o suficiente para qualquer obra cinematográfica, que no fundo tem como principal ocupação a imortalização de corpos em movimento. É na atribuição dessa noção última a discussões a respeito de papéis, sentimentos e conexões que o diretor concretiza o seu encerramento, que mesmo na esfera da subversão ainda utiliza de vários signos plásticos. A função do escritor, por exemplo, já diz muito sobre o próprio exercício de externalização artística, calcada na figura de um sujeito que em seus múltiplos livros tenta elaborar a respeito do desejo físico humano.
A passagem em que Gena Rowlands retorna à casa do irmão com diversos animais, extensões literais de seu próprio espírito turbulento e indomável, expressam uma exatidão imagética mas que se torna suspensa em sua colocação narrativa, que bem estabelece o senso constante de transformação e improviso da produção. O diretor queria explorar diversos caminhos que a desolação inquietante de suas personagens poderiam exigir, interessado mais nesse trânsito de um pensamento ao outro, da relação entre causa e efeito entre uma ideia e um impulso irracional, do que nas imagens saídas disso em si.
Vale resgatar nesse sentido a análise do crítico Ruy Gardnier sobre a obra, na qual ele explora esse vínculo com a expressividade da forma física. Ele discorre a respeito do desinteresse da câmera de Cassavetes por um registro expressionista e nítido desse campo corpóreo, trazendo o histórico do cineasta de reconfiguração dos corpos dentro de seus planos. É como se o aparato estivesse a todo momento em busca de um ruído, uma margem de deformação, seja pela sobreposição de curvas distintas, através da compressão em um mesmo enquadramento ou mesmo pelo aparato do foco, que reivindica a desnaturação corporal.
Não que exista uma falta de atração pela observação desse objeto, mas justamente o ímpeto de manutenção de uma margem a ser preenchida pelo ator. Esse fluxo constante de choques entre ator e diretor — em alguns casos, como esse —, no qual mentalidades pessoais se confundem com uma percepção mais superlativa das lógicas humanas sendo ali arquitetadas, por si só também traduz essa atmosfera pulsante e norteadora de uma experiência sem um começo, meio e fim bem definidos.
À cargo de um protagonista que a priori sequer seria seu, temos aí uma das aplicações mais evidentes de Cassavetes nesse sentido, em que a confluência entre a sua autoria e o desenvolvimento de um personagem também autor permite a confusão entre a realidade e a interpretação. Isso contribui ainda mais para esse senso de efemeridade e mudança constante, que mesmo em passagens mais concretas são transferidas às falas incertas em que a dupla de irmãos discute sobre as suas percepções de amor.
De um amor a outro, de um prazer carnal a outro, é válido ponderar ainda, especificamente sobre essa lógica do movimento como uma representação dessa efervescência que Cassavetes sabiamente utilizou justamente pela noção de sua incapacidade em solucioná-la, encontrando em seus problemas as suas maiores pérolas.
UMA DANÇA IMPULSIVA
Não há nada que represente melhor a tensão intrínseca à Amantes, impregnada na desarmonia poética com a qual os laços de afeto interferem na destruição, e consequente reconstrução — ainda que às avessas em certos exemplos — do que a passagem caracterizada por uma apresentação de dança. Luzes em forte contraste e refletores luminosamente superexpostos sugerem uma manipulação até maneirista da imagem, mas logo fica clara a relação de repulsa travada entre câmera e assunto. É como se esse afastamento literal motivasse planos que arquitetam uma espécie de “musical reverso”.
Em seu delírio de distanciamento com a vida em si e de seu papel como uma instituição feminina, Sarah se desloca da realidade por meio de um sonho, e enxerga a si mesma como uma bailarina. Da fragmentação de sua essência em corpo e simulacro, ela se transmuta em uma sugestão, esculpida por uma silhueta em contraluz, que se afasta da lente que a persegue, negando a sua conversão imagética.
É essa repulsão literal que determina parte da movimentação que esculpe os planos ali montados, e que utilizam também de planos mais fechados de imensa utilização de sombras no ocultamento de um rosto tão expressivo quanto o de Rowland — e que não por acaso persiste em uma mesma linha da música cantada, “eu não tenho certeza…”. Temos a breve emulação, como mais um impulso, de um cinema de gênero que apenas Cassavetes seria capaz de fazer — aquele que pouco se interessa pelo que se vê, buscando sempre o que não está concretamente ali.
Tal lógica de dilaceramento de suas personas pelos bens plásticos da imagem, pouco atraídos por eles em si, mas sim nas transfigurações que carimbam nos bens mais orgânicos — os seus atores — à disposição no set, se espelha bem por todas as suas obras, alcançando aqui um estado de insustentabilidade pela tensão inerente à própria existência. Dotada de uma grande angular deformadora, a câmera também expulsa Sarah em planos mais abertos, reservando-a às extremidades laterais do quadro. Em seu movimento, entretanto, é curioso pensar como a noção espacial de onde ela está, ou seja, aquela que aqui recusa o holofote, é a grande responsável por sua ida de um lugar a outro em primeiro lugar.
É a não determinação dessa figura simbólica, agora conferida às sombras e ao desaparecimento — como se decidisse não mais se sujeitar a essa condição confusa de difusão entre a verdade e a arte, a imagem e a essência, perdida em um abismo entre um raciocínio público e uma alegoria privada — que dita a verificação dessas cenas em primeiro lugar. Passagens que passam correndo pelas representações mais frágeis do seu arquétipo mais imediato — as bailarinas mirins, entre elas a filha com quem Sarah não consegue se relacionar, signo ingênuo que é cortado para fora de um plano que opta por picotar a sua totalidade em uma parte de si mesmo —, filmado durante a maior parte em um ângulo baixo que captura apenas as suas pernas, e que terminam por se isolar de seu objeto central em um desolador plano aberto.
Tem-se aí um musical com uma falta de higiene que apenas Cassavetes seria capaz de reproduzir, resultado que alcança pela manutenção de sua lógica de priorização das pulsões, dos encontros e desencontros a serem ultrapassados por esses corpos, em detrimento da exatidão e da certeza de suas coreografias superficiais.
Um dos últimos planos da sequência em questão, e que é ironicamente seguido por um plano mais exato e de reconciliação literal e em plano médio de Sarah, sua filha e seu marido, mas cuja normalidade é justificada pelo corte para Rowland acordando e deixando o seu estado de transe efervescente.
CONCLUSÃO
Entre os enquadramentos sangrados e os jogos de sombra e luz, é interessante notar a primitividade que o último filme de John Cassavetes carrega no desfecho de uma das mais inventivas filmografias da história do cinema. Primitivo não por um atraso no resultado estilístico absoluto de suas imagens, mas como um elogio, e muito pelo contrário: por resgatar uma relação entre o homem e a câmera que premedita uma curiosidade fundadora de novas formas de arte.
Um ímpeto de investigação e conexão com um desconhecido sempre inalcançável, que jamais ousamos decifrar completamente. Mas sim, e em um objetivo totalmente oposto, que nos convida a navegar através dele, por meio de nossos dramas, nossas digressões, conflitos e espaços próprios impassíveis de qualquer resolução.
É por esse caminho que Cassavetes, aqui um homem atormentado pelo possível fim de seu mistério, e desde as primeiras imagens movido pela ânsia de interação, de estudo e de compreensão cada vez melhor daqueles que os cercavam, e das necessidades e impulsos que os guiavam nessa interação.
Influenciado por um fértil passado cinemático de manipulação de imagens, ele pôde testemunhar um refinamento das construções plásticas que lhe permitiu, pela confiança total em seus processos efêmeros e de valorização do imprevisível, renegar uma plasticidade falsa para preservar a extensão mais concreta de que podemos usufruir: o corpo e os desejos, as pulsões, as dúvidas, as incertezas, as angústias e os prazeres, que nos atravessam e nos convidam a tentar nos desvendar cada vez mais.
BIBLIOGRAFIA
AMANTES (Love streams). Direção: John Cassavetes. Produção: Yoram Globus, Menahem Golan. Intérpretes: Gena Rowlands, John Cassavetes, Diahnne Abbott. Roteiro: Ted Allan, John Cassavetes. 1984, EUA (141 min), son., color;
BERLINER, Todd. Hollywood movie dialogue and the “real realism” of John Cassavetes. Film Quarterly vol 52, número 03, 1999, pag 2 -16. Disponível em: < http://uncw.edu/filmstudies/faculty/documents/Berliner.FQ.pdf> Acesso em: 25 de junho de 2011. CARREIRA;
CARNEY, R. The films of John Cassavetes. Reino Unido: Cambridge University Press, 1994. ________. (org,). Cassavetes on Cassavetes. Londres: Faber and Faber, 2001.
THIERRY, J. John Cassavetes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.