Amazônia, Marco Temporal e Crise Climática na 47ª Mostra

Foto: Divulgação/47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

Com quatro documentários envolvendo os temas, a seleção demonstra as diferentes formas de abordagem, de linguagem e de produção de documentário 

Guilherme Giusti

Dentre os filmes selecionados em sua programação, A 47° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo trouxe ao público paulistano a possibilidade de assistir a quatro documentários que tratam da relação entre a crise climática, o desmatamento na Amazônia e a luta indígena pela demarcação de seus territórios. Em A Geração Ameaçada (2022, Celeste Geer), De Longe Toda Serra é Azul (2023, Neto Borges), O Posto Avançado (2023, Edoardo Morabito) e no premiado Somos Guardiões (2023, Chelsea Greene, Edivan Guajajara, Rob Grobman), vê-se o uso de diferentes formatos e linguagens do documentário, entre eles o empoderamento indígena da câmera como forma de expressão e denúncia de sua própria realidade.

É fato notório que vivemos uma crise climática. Em 2022, o Brasil respondeu por 2,44% de toda a emissão anual de gases do efeito estufa, sendo o 5° país no ranking. Desse total, aproximadamente 75% vem da Agropecuária e das Mudanças de Uso de Terras e Florestas (o que inclui o desmatamento). De toda área desmatada, 62,1% foi na Amazônia. 

Um trabalho pouco articulado pela mídia é explicitar a relevância da luta indígena por demarcação no processo de preservação do meio ambiente. É nesse sentido, de demonstrar as profundas conexões entre essas questões, revelando ao público a forma que se dá a política e educando-o das crises que vivemos, que surge a necessidade da realização de documentários como estes selecionados pela 47° Mostra

O Posto Avançado: A Utopia de uma nova reunião do Pink Floyd

O Posto Avançado (2023), dirigido pelo italiano Edoardo Morabito, acompanha a jornada de Christopher Clark, um escocês que viveu boa parte de sua vida defendendo a Amazônia. A narrativa acompanha uma das utopias de Clark, de reunir novamente a banda Pink Floyd, para fazerem um grande show dentro de um território não demarcado na Amazônia, como forma de trazer conscientização internacional da necessidade de demarcação e proteção de terras.

A proposta do escocês pode até ser interessante em um primeiro momento. Porém, conforme o documentário se aprofunda em sua vida, é possível perceber que se trata de uma obsessão infundada, de alguém que não conhece profundamente a realidade brasileira e a política internacional. Vemos também o não-ator passando a se aproveitar do documentarista, exigindo que pague as suas viagens para o Reino Unido, em uma tentativa de contactar os membros da banda. Ao fim do documentário, porém, o diretor faz uma breve crítica à forma como Clark tentou usurpar do filme para atingir seu objetivo.

O filme se torna uma forma de ressaltar a figura de Clark – um estrangeiro que ajudou a criar, em 1992, a ONG Associação Amazônia, que, no entanto, é alvo de acusações de apropriação ilegal de terras e CPIs Estaduais e Federais. Na contramão, o filme tenta o apresentar como esse possível salvador do meio ambiente – que não consegue atingir seu objetivo com o show, mas que tem seu mérito na demarcação em 2018 da RESEX Baixo Rio Branco-Jauaperi. 

A Luta Indigenista: Um olhar para De Longe Toda Serra é Azul

Foto: Divulgação/47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

De Longe Toda Serra é Azul (2023) é um filme inspirado no livro de mesmo nome escrito por Fernando Schiavini, indigenista que trabalha há mais de 48 anos na área e protagonista do documentário. Sua geração protagonizou a luta pelos territórios indígenas durante a época da Ditadura Militar, estabelecendo uma base que perdura nessa defesa até os dias de hoje.

O diretor, Neto Borges, faz um registro visual das memórias de seu protagonista, em espécie de biografia que conta o percurso de Fernando desde sua entrada na FUNAI, em 1974, passando por outros postos da instituição. O filme articula isso através de visitas aos lugares pelos quais o indigenista já passou, junto de colegas que ajudam a reconstituir essa narrativa. Isso demonstra o afeto que se mantém ainda hoje entre os povos indígenas da região e aquela geração que lutou contra os esforços desenvolvimentistas da ditadura militar. Os recursos jornalísticos, como recortes de jornais e imagens de arquivo, são aqui utilizados de maneira a evidenciar a reconstituição histórica.

A construção da narrativa alterna entre informação e apreciação das imagens. Combina imagens aéreas do Brasil profundo e das grandes paisagens, com sua trilha musical contemplativa, fazendo uma espécie de meditação sobre o material captado. O longa aborda também figuras historicamente importantes do passado e ressalta a luta das lideranças indígenas atuais, como Sônia Guajajara e Joênia Wapixana. Configura-se, portanto, como uma importante contribuição audiovisual, sendo um reconhecimento da difícil luta de figuras como Fernando e outros indigenistas que criaram a base para a luta da geração atual. 

Somos Guardiões: antítese À Geração Ameaçada

Bill Nichols, em Introdução ao Documentário, apresenta, entre os modelos de documentário, o Expositivo, aquele que “agrupa fragmentos do mundo histórico numa estrutura mais retórica que estética ou poética”, que “dirige-se ao espectador diretamente, com legendas ou vozes que (…) expõem um argumento”. 

A Geração Ameaçada (2022), dirigido por Celeste Geer e Somos Guardiões (2023), dirigido pelo indígena Edivan Guajajara junto dos estadunidenses Chelsea Greene e Rob Grobman, são dois documentários que operam nesta lógica do Expositivo. Esse modelo tradicionalmente depende de determinados recursos jornalísticos para expor e validar seu argumento, fazendo-o mais impactante e verossímil perante o espectador. Porém, enquanto o primeiro filme não consegue alcançar essa confiança e engajamento do espectador, o segundo longa-metragem o faz com maestria – fazendo por merecer o Prêmio do Público de Melhor Documentário Brasileiro na Mostra.

  A Geração Ameaçada é mais um documentário que retrata a luta individual contra a crise climática. Em sua gênese, o filme tenta fazer uma denúncia do risco sério que os seres humanos e o meio ambiente correm se não lidarmos efetivamente com essa crise. Ele faz isso por meio de uma linguagem globalizada, trazendo multiculturalidade na escolha de seus personagens, como uma indígena panamenha, um aborigena australiano, um jornalista britânico entre outros.

A ideia é nobre, porém, a execução deixa a desejar. Fundamentalmente, o longa-metragem falha na maneira de comunicar a sua denúncia, por conta de uma incessante busca por expressá-la de modo que uma grande quantidade de pessoas pudesse se identificar. Ele traz essa diversidade de identificação em excesso, de modo a resultar em fragmentação: não se identifica com nada no decorrer do filme. Isso apenas demonstra as possibilidades perdidas do documentário, uma vez que seus diálogos são construídos de maneira genérica. As figuras entrevistadas não são devidamente apresentadas e a seriedade do tema é desrespeitada pela superficialidade do tratamento. No fim, o verdadeiro problema não é retratado e as técnicas do documentário expositivo – como uso de figura de autoridade, gráficos, dados, imagens de arquivo, etc – não são propriamente utilizadas em sua construção. A consequência é a incapacidade de tocar o espectador com a necessidade que deveria.

Somos Guardiões, por outro lado, consegue trazer a seriedade que um documentário com essa proposta exige, sem ser desgastante. O filme apresenta a perspectiva completa: do extrativismo ilegal de madeira ao desmatamento ilegal de terras para agropecuária, passando pelas anti-políticas locais que facilitam a contínua execução dessas ilegalidades e sua contribuição para a crise climática. 

Isso o leva além, ao denunciar as grandes empresas que abusam dessas ilegalidades para fins econômicos. Não suficiente, traz ainda a defesa de um território indígena, feita pelos Guardiões da Floresta – acompanhamos Marçal Guajajara e outros proprietários de terras interessados em preservar suas terras. 

Foto: Divulgação/47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

O filme consegue trazer o espectador para o campo onde a luta está acontecendo. Ele demonstra, com dados e mapas anuais de desmatamento, o impacto que está se dando diretamente à Amazônia Legal – uma vez que tudo em volta dos territórios indígenas tem sido desmatado nas últimas décadas, mostrando a necessidade de sua proteção contra invasões ilegais –, com destaque à ausência dos órgãos governamentais responsáveis por combatê-las. Também exemplifica que a Amazônia possui função de regulação de temperatura e chuvas no Brasil, por meio da fala de figuras de autoridade como Luciana Gatti, pesquisadora do INPE, e Bruno Bassi, jornalista climático. 

Tendo em seu corpo de Direção Edivan Guajajara, indígena da Aldeia Zutiwa e criador da Mídia Ninja, o filme é uma aula da forma-narrativa de documentário com foco na luta indígena, na proteção da Amazônia e do meio ambiente. 

Guilherme Giusti é estudante de Cinema na FAAP, tem interesse por política e crise climática. Seu olhar recai sobre a técnica do documentário, da fotografia e do som. 

Referências Bibliográficas

Análise das Emissões de Gases de Efeito Estufa e suas implicações para as metas climáticas do Brasil. SEEG, 2023. Disponível em <https://energiaeambiente.org.br/wp-content/uploads/2023/04/SEEG-10-anos-v5.pdf> Acesso em 5 de novembro de 2023. 

EDGAR – The Emission Database for Global Atmospheric Research. Disponível em <https://edgar.jrc.ec.europa.eu/report_2023>. Acesso em 5 de novembro de 2023.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Tradução de Mônica Saddy Martins. Col: Campo Imagético 5 ed. São Paulo: Papirus, 2012.