Anti-jornalismo e o cinema de relatos de Eduardo Coutinho

Mais do que objetividade jornalística, os filmes de Coutinho estão interessados no relato dos acontecimentos sob a lente transformadora dos entrevistados

Por Felipe Parlato*

Quando Eduardo Coutinho teve a produção de seu filme Cabra Marcado Para Morrer em 1964 sob justificativa de “material subversivo”, diversas informações falsas sobre a natureza do filme estamparam os jornais. Não é de se espantar que, diante da oportunidade de dedicação total ao cinema após o sucesso do documentário derivado desse projeto inicial, Coutinho tenha se libertado das amarras do jornalismo para se dedicar 100% ao cinema.

Jornalista de formação, o maior nome do cinema documental brasileiro começou a sua carreira trabalhando em periódicos, como a revista Visão. Envolvido com o movimento de cinema novo, escreveu e dirigiu alguns longas durante a década de sessenta. Na virada da década, retorna ao jornalismo trabalhando no Jornal do Brasil, mantendo seus trabalhos cinematográficos paralelamente. Em 1975, volta-se para a televisão ao integrar o programa Globo Repórter. Lá, ganha muito da base para desenvolver posteriormente seu cinema documental.

Nota exibida no filme Cabra Marcado Para Morrer

Após o sucesso do dessa vez documentário Cabra Marcado Para Morrer em 1984, o diretor pede demissão do Globo Repórter, pretendendo largar novamente o jornalismo e se voltar a produções menos comprometidas com o rigor informacional. Em suas entrevistas, Coutinho não busca tirar algo específico do entrevistado, extrair informação em busca de um discurso político ou social específico. Ao contrário disso, ele deixa os entrevistados livres para expor o que lhes é interessante, utilizando-se de perguntas apenas para manter a fluência da conversa.

É o que conta em uma entrevista concedida em 2011 a Mariana Simões, da Agência Pública. “Eu não estou interessado no conteúdo social da vida da pessoa, eu estou interessado no que a pessoa fala a partir de sua experiência sabendo que, como é memória, toda memória é mentirosa, portanto tem verdade e mentira juntas, isso é inevitável”, declara. Nesse sentido, pratica em seus filmes uma espécie de anti-jornalismo, na medida que rejeita — ou melhor, não dá prioridade — às técnicas básicas de apuração, evitando também interferir nas respostas e atitudes dos sujeitos retratados.

O gênero documental, desde seus primórdios, é marcado por interferências externas, geralmente do diretor, naquilo que é mostrado. Aquele que é considerado um dos primeiros documentários longa-metragem da história do cinema, Nanook of the North, do pioneiro Robert Flaherty, já em 1922 conta com reencenações de alguns eventos que têm como ponto central o esquimó Nanook. Mais recentemente, documentaristas como Michael Moore são conhecidos por construir filmes de modo a oferecer uma conclusão a um argumento pré-determinado. Nesse sentido, a busca por neutralidade, tipicamente jornalística, está presente no cinema de Coutinho. Por outro lado, questões de apuração e objetividade são fonte de preocupação.

Pôster do filme Nanook of the North (EUA, 1922)

Vejamos como exemplo Edifício Master, um de seus filmes mais célebres. Nele, o documentarista se propõe a coletar depoimentos dos muitos moradores de um edifício tradicional em Copacabana, no Rio de Janeiro. As personagens apresentadas são as mais diversas, de faixas etárias, rendas e ocupações variadas. O que garante a unidade do filme é, portanto, o espaço de habitação que todos ali compartilham — incluindo a equipe de produção do filme, que morou lá por três semanas, período no qual realizaram as gravações.

A ausência então de uma delimitação temática muito rígida concede aos entrevistados uma oportunidade rara: a de se fazerem ouvidos. Fora os relatos, não são usados outros instrumentos ilustrativos, como fotos, gravações e documentos. Coutinho se limita a nos mostrar na tela apenas o primeiro nome de cada um. As entrevistas que figuram no final, contudo, são o bastante para cativar o espectador.

A praxe jornalística também é deixada de lado, em sua maior parte. Idade e profissão só são informações concedidas por vontade do entrevistado ou quando o entrevistador as considera relevantes para o que está sendo contado. E apesar de uma equipe de filmagem adentrar um apartamento ser sem dúvidas um grande acontecimento para a maioria das pessoas, o clima aparenta ser bastante informal, uma vez que Coutinho entende que isso é um fator essencial para capturar o máximo de espontaneidade das pessoas.

De forma semelhante, Cabra Marcado Para Morrer está menos interessado nos pormenores que cercam o assassinato de João Pedro Teixeira, evento que seria retratado inicialmente, do que está em como a morte do líder revolucionário — e, porteriormente, a produção do filme — afetou sua família, amigos, e aqueles que o cercaram. A ideia é entender por onde andaram, o que fizeram, e como lidaram com aquela situação. Afinal, por trás de todo acontecimento político, estão vivências pessoais que se desdobram como as ramificações de uma grande árvore que foi plantada.

De Cabra Marcado Para Morrer a Edifício Master, passando por Boca de Lixo e Jogo de Cena, poucos diretores entendem o poder do relato pessoal como Eduardo Coutinho. E apesar das declarações fortes do diretor a respeito do jornalismo, seus filmes podem servir de escola àqueles que procuram tirar o mais interessante do mais trivial.

*Sobre o autor: Felipe Parlato gosta de muitas coisas, uma delas é o cinema. Estuda jornalismo na Cásper Líbero. Enquanto não descobre sua maior paixão, vai se dedicando um pouco a cada uma delas.

Bibliografia:

Entrevista de Eduardo Coutinho à Agência Pública

EDUARDO Coutinho. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa204013/eduardo-coutinho.

COUSINS, Mark. História do Cinema. São Paulo: Martins Fontes, 2013

Memória do Cinema Brasileiro: Eduardo Coutinho. CPDOC. Disponível em:

http://cpdoc.fgv.br/memoria-documentario/eduardo-coutinho