Belair: Terremoto Clandestino À Beira da Margem

Uma breve retrospectiva do que foi a principal produtora do Cinema Marginal brasileiro

Por Pedro Vidal

Em meio a alvorada tropicalista, com Os Mutantes fazendo barulho nos festivais, a imposição do AI-5 em 68 não só leva Gil e Caetano ao exílio em Londres, mas a cultura brasileira ao acosso. No Festival de Brasília de 1969, enquanto o governo perseguia e torturava políticos opositores, cineastas se reuniam na Capital da Esperança para mostrar seus mais recentes experimentos audiovisuais. O Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade traz uma leitura colorida e exibicionista do livro de Mário de Andrade, contando com uma interpretação icônica de Grande Otelo, e Meteorango Kid: O Herói Intergalático leva os censores às salas de exibição para regular o áudio dos diálogos, os críticos Paulo Emílio Salles Gomes e Walter da Silveira pedem para a plateia permanecer na sala, como forma de resistência.

O Festival de Brasília mostra um momento em que o Cinema Novo vai repensar os seus ideais desenvolvidos ao longo da década de 60, Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro de Glauber Rocha são marcos desse período, filmes que vão reinventar esse movimento a partir de novas propostas estéticas, usando de uma paleta de cores mais proposital e técnicas de produção bem planejadas.

Enquanto o Cinema Novo apostava em uma nova linguagem, O Bandido da Luz Vermelha de Rogério Sganzerla — cineasta que contém um dossiê vasto recém-lançado aqui na Vertovina — , vencedor do festival do ano anterior, deixou um espaço novo para cineastas emergentes. O filme de Sganzerla, realizado na Boca do Lixo, além de trazer um apelo popular muito forte, vai se utilizar das vanguardas européias, das guitarras de Jimi Hendrix e do samba de Noel Rosa para fazer uma salada tropicalista. Junto com Sganzerla, Júlio Bressane vai fazer duas das grandes obras do “udigrudi” brasileiro: Matou a Família e Foi ao Cinema e O Anjo Nasceu.

Os dois filmes de Bressane iriam representar uma mudança no fazer cinematográfico revolucionário no Brasil. Enquanto o Cinema Novo procura as cores, a sofisticação da produção e a comunicação com o grande público, Bressane sai pela contramão, adotando o 16mm e o preto e branco, a filmagem em poucos dias — realizou o Matou a Família e O Anjo Nasceu ao mesmo tempo, o primeiro em 12 dias e o segundo em 7 — , o baixo custo de produção e a completa liberdade de exploração autoral.

Trabalhando com uma linguagem agressiva e anárquica, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla caminham pela sombra, à beira da margem, sendo marginais e heróis como na arte de Oiticica. A filmografia de ambos os diretores nesse período dá origem ao Cinema Marginal, e a “intentona udigrudista”, apelidada por Glauber, inicia suas primeiras produções. Bressane e Sganzerla vão se conhecer no Festival de Brasília de 1969, o primeiro havia levado O Anjo Nasceu — que recebeu enorme reconhecimento crítico, mas só chegou a ser exibido em uma sala de cinema em 1973, devido à censura — e o segundo, A Mulher de Todos. Da relação de admiração e amizade entre os diretores surge a Belair.

Em carta de princípios, no último filme da Belair, Viola Chinesa, Bressane diz: “A Belair diz uma oxigenada, diz uma lufada de ar nova na atmosfera anestesiante e vacilante do cinema brasileiro. Belair é terremoto clandestino.” Ela foi a principal produtora do Cinema Marginal dos anos 70, em apenas 6 meses de existência, Bressane e Sganzerla realizaram 6 filmes. Nesse curto período de tempo, a produtora realizou um manifesto potente em meio aos áridos anos 80 que estavam por vir.

Dentre os filmes produzidos estão: Carnaval na Lama, Copacabana, Mon Amour e Sem Essa, Aranha de Sganzerla; Barão Olavo, O Horrível, Cuidado Madame e A Família do Barulho de Bressane. Também em sociedade com Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, Helena Ignez, a musa do “udigrudi” tem papel de destaque nos filmes da Belair com suas formas de atuação. Caracterizadas pelo exagero extremo de suas personagens, a atuação experimental de Helena foi essencial para marcar o estilo da produtora.

Por conta do regime militar repressivo, a Belair não submeteu seus filmes aos órgãos de censura, sequer existia um CNPJ que qualificasse a produtora como uma empresa. Assim, Bressane e Sganzerla colocavam em risco a circulação de seus filmes, mas investiram em uma proposta de maior expressão autoral e liberdade de criação. Completamente inseridos na clandestinidade do cinema marginal, Bressane e Sganzerla priorizavam a criação e produção de filmes com graus estéticos inovadores, em detrimento de sua distribuição e exibição.

Os ideais da Belair eram notáveis pelo repúdio à estética “bem acabada” e ao “bom gosto”, a proposta marginal de Bressane e Sganzerla era pautada em um conceito de “antiarte”. O objetivo da produtora era romper com o aspecto “industrial e espetacular” do cinema e a oposição entre estética e ideologia ao mercado. A política da Belair era diferente da geração interior, do Cinema Novo, enquanto esse movimento pregava por um certo didatismo revolucionário com a plateia, a Belair apostava no discurso agressivo contra ela. Um método de “choque profanador” direcionado a um público de classe média alta.

Porém, devido ao olho repressivo do Estado militar, a Belair chegou ao fim do seu sonho. Numa madrugada em 1970, o pai de Júlio Bressane abre a porta da sala de mixagem enquanto o filho trabalhava na Família do Barulho e diz que o general Sílvio Frota, comandante do primeiro exército na época, queria falar com ele. Bressane, Sganzerla e Helena Ignez estavam sendo acusados do planejamento de um plano de subversão nacional cultural financiado por Marighella. A Família do Barulho foi interditada nesse processo e os cineastas se exilam. Na mesma noite, com os negativos de Cuidado Madame e Sem Essa, Aranha debaixo dos braços, Bressane, Sganzerla e Helena foram para Paris. Os filmes foram montados no laboratório francês Éclair e esse foi o fim da produtora.

Dentro dessa retrospectiva, é possível salientar que a Belair se configurou como uma experiência que talvez jamais acontecerá no circuito do cinema brasileiro. Uma produtora que não se preocupava com o que seria exprimido em sua arte, que buscou a transgressão marginal ao invés das pautas cinematográficas convencionais. Enquanto o cinema num geral “estava de olho no sucesso”, o cinema experimental da Belair “estava de olho na sucessão”. Até hoje o cinema experimental clama pela sua anistia.

Referências:

Noites Tropicais — Nelson Motta

https://tvuniaobrasilia.com.br/edicao-de-1969-do-festival-de-cinema-foi-marcada-pelo-tropicalismo/

http://www.filmeb.com.br/quem-e-quem/diretor-roteirista/julio-bressane

https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa397271/julio-bressane

https://www.artecines.com.br/cinema-marginal-e-a-boca-do-lixo-movimentos-cinematograficos-002/

https://luciointhesky.wordpress.com/2014/11/16/14246/

https://luciointhesky.wordpress.com/2011/06/16/belair-a-nossa-atlantida-udigrudi/

https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/rogerio-sganzerla/

https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra67284/o-anjo-nasceu

https://agenciabrasilia.df.gov.br/2017/09/23/tradicao-e-resistencia-marcam-o-festival-de-brasilia-do-cinema-brasileiro/

http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/