
Nessa entrevista, Viviane Ferreira conta sobre trajetória, influências e relação com o audiovisual negro
Por Juliana Hipólito
Viviane Ferreira é cineasta, tendo dirigido, dentre outras obras, o curta-metragem O dia de Jerusa (2014) e o longa-metragem Um dia com Jerusa (2020), proveniente do curta. Além disso, traz em sua carreira a ex-presidência da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN) e a presidência da SPCine, o maior órgão responsável pelo fomento ao audiovisual de São Paulo, além de ser professora do curso Cinema e Audiovisual da ESPM.
Nessa entrevista, ela conta algumas de suas referências audiovisuais e pessoais, falando também um pouco sobre seu processo criativo envolvendo o curta e o longa, além da sua trajetória até chegar à liderança da SPCine.
É com carisma, sutileza e muita observação que Viviane realiza seu cinema, o qual vem ganhando destaque em meio aos audiovisuais negros.
Juliana Hipólito: Para começar, quais são as principais referências do audiovisual para a sua vida?
Viviane Ferreira: Ju, acho que essa é uma pergunta que eu não consigo responder apartada do que é a chegada do audiovisual na vida de pessoas que têm a origem e a trajetória similar à minha. Pelo fato da gente estar no Brasil, temos uma presença muito forte da televisão, das telenovelas, da teledramaturgia. Acho que é inevitável que, nesse processo, uma das grandes referências audiovisuais pra mim seja exatamente o conteúdo televisivo. Então, eu vivo o audiovisual sem hierarquização entre os suportes, e acredito que é tão louvável e tão complexo, e exige da gente muita responsabilidade quando estamos construindo ou propondo um conteúdo audiovisual pro cinema, pro streaming, pra TV, ou até mesmo pros consoles de videogame. Então, acredito que essa força da televisão seja uma das grandes e mais fortes influências.
E como você me fez a pergunta no plural, penso que depois da televisão, me influencia muito esse cinema realizado às bordas da grande indústria: o cinema e o audiovisual realizado por movimentos como os movimentos dos audiovisuais negros, dos audiovisuais indígenas, dos audiovisuais femininos, dos audiovisuais trans… desses grupos que socialmente acabam sendo excluídos do acesso à grande estrutura e aos maiores recursos para fazer, e acabam encontrando alternativas super criativas e cirúrgicas para conseguir acessar a sensibilidade da audiência. Para isso, precisa de um domínio da linguagem muito aprofundado para conseguir extrair toda a potência que ela pode ofertar, ainda que não se tenha na mão todos os recursos financeiros e materiais necessários para a produção e confecção de imagens. Acho que são duas referências que me inspiram e me motivam muito no meu fazer audiovisual.
JH: Perfeito. Acho que a segunda pergunta tem bastante a ver, pois seria mais para você comentar sua relação com o cinema negro. Desde quando você teve essa epifania de que se tem um modo de fazer cinema contra hegemônico até agora que você compõe esse movimento?
VF: Eu tenho compartilhado que a mim não foi apresentada outra possibilidade de fazer cinema se não o cinema negro. Quando, com 15 anos, eu entrei no curso de Cine, TV e Vídeo na Cipó, e ao mesmo tempo fazia teatro na CEAFRO, eu contava no meu time de professores com um dos maiores cineclubistas do país, Luiz Orlando. Eu lembro de dialogar com ele e falar sobre a minha paixão pela imagem e meu desejo de fazer cinema. E aí ele me inquiria: “Você precisa saber para que você quer fazer cinema. Você precisa assistir alguns filmes, saber de algumas pessoas que sabem exatamente o por que elas estão fazendo”. Foi quando ele compartilhou comigo a cinematografia do Ousmane Sembène, falou do Zózimo Bulbul, e foi contextualizando como havia uma forma de fazer com a intencionalidade de mexer nas estruturas desiguais e excludentes da sociedade. Com 15 anos, eu já estava sendo provocada a fazer desse lugar e a olhar dessa perspectiva. Então, para mim, acabou sendo de fato um caminho natural, porque não passei pela fase do “vamos fazer audiovisual do oba oba”, sem um comprometimento real com a transformação e com o impacto real da imagem na vida das pessoas. Eu fui provocada a todo tempo sobre qual era o impacto da imagem que eu estava me dispondo a confeccionar teria na vida das pessoas. Eu acho que essa é a grande diferença: não comecei a fazer e a pensar imagens única e exclusivamente para entreter um determinado grupo, mas sim para aprimorar cada vez mais a minha consciência sobre a riqueza e as possibilidades que a gente tinha de impactar na vida das pessoas a partir das imagens que a gente propõe pro mundo.
JH: Entrando um pouco mais no curta e no longa O dia de Jerusa e Um dia com Jerusa, quais foram as principais referências para a construção do curta?
VF: Acho que a história em si e as referências do curta acabam acompanhando para o longa. O cinema e a forma de utilizar a linguagem clássica, da câmera clássica, mais estável, tanto no curta quanto no longa, eu olho muito e bebo muito do cinema de Zózimo Bulbul. Então, pensar numa narrativa espiralada na qual o tempo faz parte e é personagem vivo, presente, fluido na narrativa é olhar também para a forma como Zózimo lidava com a variante tempo nas produções dele. É olhar para Alma no Olho e perceber como ele faz ali em pouco mais de 12 minutos um resgate histórico de mais de 500 anos, conseguindo transportar para a audiência e mexer na sensibilidade dela, estando aí a capacidade e a possibilidade de sentir na pele a diferença de cada um daqueles tempos que ele propõe. Quando eu olho para Abolição, mais uma vez ele repete essa métrica no tempo, quando revisita a história do Brasil de 1500 a 1988, quando a gente estava ali nos debates da Constituinte para garantir a Constituição de 88 (que é a que nos rege até hoje). Ele faz um resgate bem ancorado na relação com o tempo para falar sobre como aquele momento era exato e necessário para que direitos coletivos avançassem, sobretudo olhando para a necessidade de mobilidade social das comunidades negras e indígenas. Então, a respeito dessa relação narrativa e dramatúrgica com o tempo, eu olho muito para o cinema do Zó. Acho que do ponto de vista da estética eu olho muito para o que o Sissako faz em Timbuktu. Então, tem ali a maneira de como ele consegue trabalhar texturas associadas à movimentação e ao posicionamento de câmera, como ele trabalha as transições, brincando muito com a dinâmica das transições entre espaços para a gente evidenciar as transições de momento e sentimento das personagens. De maneira objetiva, foram dois cineastas para os quais olhei muito. A escrita de Conceição Evaristo e Clarice Lispector também me ajudaram muito no processo de roteirização, tanto do curta quanto do longa. Essas são as referências que considero clássicas.
JH: Considerando as referências que você citou, pode falar um pouco sobre o processo criativo do curta? Como foi sua concepção?
VF: A história da Jerusa surge pra mim, de fato, da minha observação e interação com o cotidiano. Tem um choque de duas experiências específicas: a primeira de quando eu estava no ponto de ônibus ouvindo música, bem de boa, fechada na minha bolha, no meu mundo, e uma senhora estava tentando conversar comigo, falando mal e xingando a própria família, e eu basicamente coloquei aquela senhora no lugar de inapropriada e não dei atenção, não quis estabelecer aquele diálogo, não quis me dispor a escutar. Num dado momento, ela percebeu isso, se afastou de mim no ponto de ônibus, sentou e começou a chorar. Ela chorava em silêncio, como uma tentativa de segurar o soluço exatamente para não me atrapalhar (ou eu interpretei que era para não me atrapalhar). Enfim, o fato é que o choro silencioso me desconcertou completamente, e aí eu não dava mais conta de permanecer ali e também não fazia ideia do que falar pra ela diante de tantas denúncias que ela tinha feito sobre a própria família, vociferando. Então, eu peguei o primeiro ônibus e saí logo dali. Porque assim, quando você não consegue resolver o problema, você corre dele. Tentei fugir, de fato, daquele problema, mas ele continuou ecoando na minha memória, e eu tive insônia pelo menos umas três noites com aquela imagem, tentando pensar no que poderia ter acontecido com aquela senhora, se eu deveria ter conversado, se eu não deveria ter conversado. Aí, eu entrei naquela espiral de me culpar por não trocar palavras com ela, e a única alternativa foi o papel. Foi aquela coisa até clichê de roteirista de “ah, não conseguia dormir então levantei no meio da noite e fui escrever, e depois que escrevi, acalmei meu coração e consegui dormir em paz”, bem clichê desse jeito. E aí, no primeiro momento, a história saiu vomitada, bagunçada, desestruturada, porque a única razão de escrever era para me livrar daquele turbilhão de reflexão sobre aquele encontro, aquele momento. Mais adiante, com a decisão, junto com a minha sócia, de estruturar projetos dentro da empresa para disputar editais, ela lembrou à época dessa história: “Por que você não estrutura lá a história da velhinha reclamona?” e eu falei: “Mas tá ruim demais, não tem condição”. Ela falou: “Que? Tá ruim porque não tá trabalhando com o olhar de ir para a tela, você pode tomar esse tempo que a gente tem até o edital e trabalhar a historia”. E aí, eu voltei para aquele texto tentando entendê-lo na tela, tentando transpor para a imagem.
Eu sou uma observadora fofoqueira do cotidiano, então fico prestando atenção na vida das pessoas à distância. Sempre transitei na cidade muito atenta às pessoas, como elas andam, o que estão fazendo, os pequenos gestos. Era um período que eu estava observando mais as pessoas em situação de rua, identificando situações de muita partilha de afeto entre elas. Eu refletia que, apesar dessas pessoas que não têm o acesso às condições materiais básicas para sobreviver, ainda assim elas conseguiam nutrir, partilhar afeto entre si. Eu lembro de uma mãe ali na Avenida São Luís com uma filha de uns 5 anos de idade. Elas viviam ali na esquina da São Luís com a Rua da Consolação e era incrível o senso de organização daquelas duas. Elas tinham uma casa que era, tipo, 2 quartos e sala, tudo dividido com cabos de vassoura e madeiras encontradas no lixo, mas tudo organizado de maneira tão simétrica e harmônica que você olhava e falava “gente, o arquiteto de Dogville passou aqui e traçou essa planta baixa”. Ao mesmo tempo, com os objetos, os quartos eram mobiliados com objetos de barro encontrados na rua, sala organizada… E aí eu lembro que quando eu passei, parei e fiquei observando. Ela estava chamando a atenção da menina, porque ela tinha acabado de se alimentar e tinha deixado a cumbuca de margarina, alguma coisa que elas estavam usando, suja, no lugar. Ela disse que a menina tinha que tirar da sala e lavar na cozinha. Eu fiquei muito impactada com aquilo. Tive situações de figuras literalmente transando na Rua Santo Antônio, ali no Bixiga, e eu ficava muito atenta às reações das pessoas. A galera transava, todo mundo transa, até porque elas moram na rua. As pessoas passavam e direcionavam olhares julgadores, quase que expurgando quem tava ali, tirando e julgando o direito daquelas pessoas sentirem e compartilharem prazer. Eu olhava para aquilo e achava massa, achava incrível como na ausência de tanto ainda conseguia-se compartilhar muito do ponto de vista de afeto.
E aí, quando eu vou para o roteiro, eu vou tentar garantir um pouco essas experiências reais de viver e de estar no mundo, observando e tentando identificar como essas imagens do mundo também me atravessaram e me modificaram. Obviamente, a gente vai fazendo ali um processo criativo feito uma colcha de retalhos, porque é pegar a experiência da senhora no ponto de ônibus, das observações cotidianas, olhar para todas aquelas pessoas que eu tinha observado e cruzado. Elas tinham uma vivência racializada, então era como falar sobre todos os afetos e todas as ausências desse mundo racializado.
Naquele momento, havia um debate muito forte, sobretudo na academia, em torno da solidão das mulheres negras. Ganhava uma proeminência muito grande, naquele momento (2010, 2011…), a compreensão de que a solidão das mulheres negras estava restrita à possibilidade de ter ou não um casamento, uma vivência matrimonial. Me incomodava um pouco, todas as vezes, em todas as rodas, palestras e conversas que eu acompanhava no final das contas, acabar nisso, e eu ficava “gente…”, porque o racismo estrutural é tão perverso e, ao mesmo tempo, tão eficaz na sua crueldade que existem muitas facetas de vivência de interação com a solidão para as mulheres negras nessa estrutura social brasileira. Daí, eu fui pensar como aquela senhora no ponto de ônibus: o que ela estava denunciando, no final das contas, era exatamente a faceta da solidão que ela estava vivendo. Daí fechou o tripé, fechou para mim a pirâmide da história, e feito o processo de desenvolver do roteiro atenta a esses três elementos: àquela história nuclear da senhora que me inspirava, à relação com as pessoas e esse contraponto afetivo entre afeto e ausência de recursos materiais, e, ao mesmo tempo, a essa reflexão mais elaborada sobre uma faceta ou outra da solidão vivenciada pelas mulheres negras. E aí, fazer isso no encontro entre gerações diferentes, pra mim me possibilitava também trabalhar com o tempo como elemento narrativo e dramatúrgico a favor da história. De uma certa maneira, Sílvia, seja no curta ou no longa, responde ao tempo no sentido horário, ao tempo do Capital, do relógio, à pressa no cotidiano, à pressa da globalização; e Jerusa responde ao tempo anti-horário, ao tempo da memória, esse tempo o qual pode ir, pode voltar, pode permanecer, pode avançar para o futuro, vai para o passado, volta, olha para os lados… então, esse tempo mais fluido.
JH: Como surgiu a ideia de transformar o curta (O Dia de Jerusa) no longa (Um Dia com Jerusa)? Por que houve essa alteração no título?
VF: Durante um tempo, eu não enxergava um longa no meu curta. A verdade é que à medida em que a gente vai interagindo com a audiência, e acho que é importante falar: eu aprendi muito ouvindo as pessoas falando sobre o meu filme, e uma das coisas que eu aprendi foi que a partir daquele curta havia a possibilidade de fazer um longa-metragem. Então, de maneira mais objetiva, quando em 2014 fomos para o Festival de Cannes, o cineasta nigeriano Newton Aduaka já tinha visto o filme aqui no Rio de Janeiro naquele mesmo ano, ficado super impactado e falado o quanto aquela história tinha atravessado ele. Depois, a gente se reencontra no Festival de Cannes em maio, ele me chama e fala assim “Viviane, você precisa fazer um longa-metragem a partir da narrativa, a história ta ai”. Na sequência, ainda no festival, a gente teve a possibilidade do diretor do Cine Foundation ver o filme, e aí, numa roda de conversa, ele diz que o longa-metragem estava ali.
Voltei do festival toda empolgada, querendo enxergar esse longa, fiquei alguns meses tentando enxergar, tentando fazer. De fato não enxergava, então engavetei, e meio que desisti da parada. Mas aí, logo adiante, houve a publicação de um edital que teve de política afirmativa de longa-metragem para realizadores e realizadoras negras, e eu não tinha dúvidas que todas nós precisávamos, sobretudo as meninas que integravam os movimentos de audiovisuais negros, inscrever os nossos roteiros e participar daquela chamada pública. Daí eu voltei para aquela história, e foi aí que eu consegui enxergar possibilidades do longa-metragem ali. Mas já não me interessava falar do mesmo jeito e da mesma perspectiva que o curta. Então, já não era mais uma questão de Sílvia passar no vestibular, pra mim já era uma questao de como esses estudantes negros e negras que acessam o ensino superior podem contar também com o corpo docente com o qual eles se identificam todas as aulas. E aí, já era Silvia passar a ser professora. Jerusa já não era só a questão da solidão, mas uma preocupação com uma morte digna num país onde as pessoas negras são mortas de forma banal. Então, você ter a possibilidade de envelhecer e ter uma morte digna acaba sendo um direito a ser reivindicado constantemente. Sobre a dinâmica do título, desde o curta, a minha proposta narrativa sempre foi de um protagonismo compartilhado, e aí com o fato do curta se chamar O dia de Jerusa, eu recebia vários questionamentos tipo “ah, é só Jerusa a protagonista”. E aí, eu coloquei lá Um dia com Jerusa porque fica direto e óbvio que se trata de uma narrativa com o protagonismo compartilhado.
JH: Como foi para você trabalhar com a intergeracionalidade na narrativa?
VF: Para mim foi um processo de entender o meu entorno como uma potente fonte de pesquisa. Então, eu observei as minhas mais velhas no terreiro. Eu sou do candomblé, então, lá em casa, a gente tem um time de mais velhas. E aí, era essa coisa de observar como essa relação se dá muito naquele ambiente. Olhei muito para a minha própria experiência como uma pessoa jovem que, assim como Silvia, estava no corre. Tem muito das coisas que eu vivo na pele emprestadas para Silvia nessa história, sobretudo a relação com o tempo e a relação intergeracional. Olhei muito para a relação com a minha avó, por exemplo. Vim para São Paulo com 19, minha vó permanecia em Salvador, e a gente tinha uma relação de diálogo constante por telefone, e eram conversas sempre muito inquietantes que ficavam ecoando e reverberando com o tempo. Então, de maneira bem direta, trabalhar com intergeracionalidade foi olhar para esse universo ao qual eu pertenço, o qual eu faço parte e entender em relação às minhas mais velhas, e as minhas mais velhas em relação a mim.
JH: Nas críticas que eu li, muito se falava sobre você ter sido a pioneira em apresentar uma equipe técnica e criativa majoritariamente composta por mulheres negras. Você é esperançosa quanto a uma mudança nos sets no geral, considerando a realidade brasileira?
VF: Eu sou uma otimista quase que patológica. Acho que não tem outra alternativa a não ser a mudança radical na estrutura do audiovisual nacional e global quando a gente pensa a importância e a necessidade de inclusão e permanência de profissionais diversos. Acho que, naquele momento, montar uma equipe com aquelas características tinha muito desse entusiasmo e do desejo de contribuir com essa mudança, e muito também de uma responsabilidade coletiva, porque foi um filme realizado com recursos coletivos de ações afirmativas. Então, eu teria a possibilidade de dirigir o meu primeiro longa, portanto achei que era justo que outras mulheres negras também tivessem a possibilidade de exercer as suas funções e profissões no lugar de chefia de equipe pela primeira vez, porque a gente só faz a segunda se tem a possibilidade de fazer a primeira. Poucos processos assumem riscos com pessoas negras, que estão acostumadas a precisar assumir os seus próprios riscos. Então ali era assumir o risco e reconhecer que o mesmo direito que eu tinha, o direito de experimentar e de errar, outras companheiras e parceiras negras também poderiam vivenciar ao meu lado se eu me dispusesse a assumir o risco de trilhar a jornada com elas. Acho que é uma das coisas que eu mais me orgulho na vida e na carreira de ter feito, acho que foi uma das decisões mais acertadas no meu processo.
JH: Por fim, falando um pouco sobre a SPCine, gostaria que você comentasse sobre suas perspectivas de assumir a presidência do maior mecanismo de fomento ao audiovisual de São Paulo.
VF: Queria primeiro compartilhar que não era uma perspectiva estar nesse lugar. O convite chegou como uma surpresa, porque normalmente tem razões políticas (político-partidárias) para as pessoas conseguirem chegar nos cargos executivos, mas não foi o caso. Acho que acessar e chegar na presidência da SPCine tem muito a ver com o trabalho compartilhado nos movimentos dos audivisuais negros. Eu estava à frente da presidência da APAN há uns 5 anos. A experiência de presidir a APAN, uma organização nacional, na qual você precisa lidar cotidianamente com a complexidade das diferentes formas de fazer e existir no audiovisual nas 5 regiões do país, acabou “amadurecendo minha carbureta”, como se diz em Salvador, para entender a dinâmica do mercado, a dinâmica do setor e sobretudo esse trânsito entre sociedade civil e funcionamento das políticas públicas no audiovisual. No mesmo período, eu vou para Brasília fazer meu mestrado em comunicação com foco em políticas do audiovisual. Acho que são 2 elementos determinantes para me tornar um quadro e um nome viável a assumir a presidência da SPCine.
O desafio é cotidiano, mas na SPCine a gente conta com uma equipe que tem muito comprometimento com as políticas públicas, que respeita demais o processo dessas políticas e o setor audiovisual. De outro lado, eu tenho a felicidade de ter contado com o apoio incondicional e irrestrito do setor. A gente tem feito uma gestão muito dialogada e muito compartilhada com o setor audiovisual na cidade. Eu gosto do diálogo entre sociedade civil e Estado, porque dessa tensão sempre nascem propostas e alternativas inovadoras e que fazem sentido de fato para a vida das pessoas. Quando o Estado tenta resolver tudo sozinho, ou quando a sociedade civil decide que só ela sabe fazer as coisas, acontece que a conversa fica muito difícil, ela fica muito dura. Eu gosto muito dessa dinâmica da construção conjunta, porque assim pode-se construir políticas de Estado, e não políticas de governo, então a gente consegue construir ferramentas e processos que são duradouros. A gente chega na SPCine num momento em que as políticas culturais e do audiovisual do país estavam e seguem sendo muito fragilizadas e atacadas, como se fossem o mal da nação, como se tudo o que a gente fizesse no audiovisual fosse uma afronta aos “cidadãos de bem”, em meio a um contexto insalubre para defender o direito de fazer audiovisual e à obrigação do Estado de fomentar esse direito de fazer. Quando a gente chega, acho que uma das coisas determinantes pra mim foi que não estávamos chegando para inventarmos a roda. Tem um histórico de pessoas que chegam na administração pública e o primeiro passo é destruir tudo o que foi feito anteriormente para depois fazer de um novo jeito e dizer que salvou tudo. Então, a jornada do herói/da heroína pública na verdade não nos leva ao clímax, só nos leva a constante quebras de objetivos e frustrações na trajetória, porque a gente vai interrompendo processos que são importantes para a consolidação do circuito, da indústria, da ciência… Então, esse compromisso com a continuidade das políticas públicas na cidade de São Paulo foi um compromisso que a gente assumiu de bom grado, até para fazer um contraponto ao discurso e à tendência de desconstrução e destruição de tudo o que a gente conhecia como política pública do audiovisual até aquele momento.