Pode parecer à primeira vista anacrônico um curta sobre o carro de bois em plena década de 1970. Mas talvez seja nesta guinada final, que resgata, mas reconfigura, toda a História de um país e de uma obra, que Mauro tenha sido mais moderno
André Quevedo Pacheco
Cineasta da nostalgia que inegavelmente foi, Humberto Mauro foi por consequência cineasta da modernização. A afirmação pode soar estranha para o senso comum, que associa Mauro à preservação de um mundo rural. A tese de Paulo Emílio sobre o cineasta, na sua lírica passagem final, insere uma fotografia em close-up dele e diz que sua feição evidencia “alguém habitado por um outro mundo”. A foto destaca os olhos, logo a foto e a frase dizem respeito ao olhar, e por consequência ao estilo cinematográfico de Mauro, habitado por um mundo pré-moderno. Mas lembremos por um momento das dezenas de filmes educativos celebrando a modernidade feitos para o INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo). Vale lembrar também um fato menos conhecido, de que em 1928, quase simultaneamente a São Paulo, Sinfonia Metrópole (1929), Mauro filmava sua Symphonia de Cataguases (1928). Filme considerado perdido, foi encomendado pelo prefeito da cidade para mostrar todos os avanços de modernização na cidadezinha do interior de Minas, na qual Mauro cresceu.
O olhar de Mauro vem de outro mundo. É um mundo próximo da poesia bucólica inglesa do século XVIII, com seus campos de abundância, ou do mundo da pintura arcadista, com suas clareiras pacíficas. É um mundo do passado que nasce com a ideia de futuro, no seio da revolução industrial. Esse mundo é construído sob medida: nos casos mais alienantes, como complemento fantasmático da mudança, aliado da sua vertente reacionária, e nos casos radicais, como contraponto dialético do progresso, questionador de sua teleologia. Muito se disse sobre a genuinidade nacional de Mauro, e é este seu aspecto mais genuíno: não a ligação com uma essência brasileira atemporal, mas a ligação com a criação destas ideias de essência por um século de transformações. Cineasta da modernização, pois mergulhado nesse misto muito particular e muito nosso de desejo por uma economia modernizada nunca completa, e uma cultura tradicional que nunca existiu.
Quando, em 1974, Humberto Mauro realiza, após dez anos sem filmar, seu Carro de Bois, as coisas já não eram bem as mesmas de quando consolidou sua carreira. A expectativa de modernização do início do século já havia encontrado reveses históricos variados, assim como a expectativa de um cinema que surgiu com essa modernidade. Mesmo o INCE, que sustentou a produção do cineasta por três décadas, havia acabado poucos anos após o golpe de 1964 – ano do seu A Velha a Fiar, último curta da série Brasilianas. Num movimento que já dava sinais em O Canto da Saudade (1952), e paulatinamente se construía nas Brasilianas (1945 – 1964), a relação entre o outro mundo do bucólico e o mundo do presente não podia se encaixar tão precisamente naquele complexo contraditório de valorização da tecnologia e saudosismo dos costumes. Era preciso intermediar passado e presente pela consciência do tempo, tanto da História do país, quanto da constituição de uma obra maureana.
A obra de Mauro pode ser facilmente dividida em fases a partir das condições de produção dos filmes (Phebo Brasil Film, Cinédia, Brasil Vox Filmes, INCE, etc.), que por sua vez espelham e dialogam com a situação econômica do Brasil. Nesse sentido, seu curta de 1974 faz um eco dessas fases. A produtora independente Corisco Filmes e a locação do filme em Volta Redonda, Zona da Mata de Minas Gerais, resgatam algo da Phebo. Já a relação com o Estado reaparece de forma fragilizada com o apoio do Departamento do Filme Educativo, quase uma continuação do INCE no novo INC (Instituto Nacional de Cinema), que por sua vez viria a ser extinto pouco tempo depois, com a criação do Concine. Além disso, Carro de Bois é um remake. Com enquadramentos e frases da narração idênticas, Mauro refilma, de maneira expandida, a segunda metade da Brasiliana 6: Manhã na Roça (O Carro de Bois) (1956). Um dos últimos trabalhos do diretor, o filme se assemelha economicamente e esteticamente a um apêndice de sua obra.
No curta de 1956, o sentido era de celebração e educação sobre este belo instrumento do passado. A morte desta tradição era sublimada pelos arranjos orquestrais das canções populares, cantadas por uma voz de tenor radiofônico. Essa deterioração lenta do esquecimento, esse tempo invisível, mas fatal do progresso, é um fundo obscuro e constante da série, mas sempre contornado de alguma maneira. Ele aparece de forma evidente em Brasiliana 4 Engenhos e Usinas (1955). O filme inicia com uma montagem rítmica do funcionamento de um engenho acompanhada por uma canção. Segue-se de um momento mais abrupto e com música instrumental, mostrando a usina que substitui o engenho. A resultante dessa contradição é a sequência dos engenhos abandonados, o drama geométrico da luz e sombra da construção deteriorada, preenchida pelas micro ações naturais que mostram o tempo suspenso do abandono à natureza estanque. Mesmo assim, o final retoma a alegria do começo e insere imagens de engenhos que sobrevivem até a atualidade.
O capítulo final da Brasiliana 4 interrompe a tristeza através da ideia de preservação, num característico gesto do modernismo brasileiro de catalogação da cultura típica. Na direção oposta, o apêndice da obra maureana escrito por Carro de Bois mantém em suspenso o desconforto e a angústia do fim. Como nunca nos outros filmes de Humberto Mauro, a morte é abordada de maneira honesta e direta. Também como nunca antes, o lirismo visual ganha um aspecto cromático que só se esboçaria novamente naquele que talvez seja o seu curta derradeiro, Flagrantes da Vida Rural (1977). A fotografia colorida do eastmancolor 35mm, para além de um possível realismo, traz um jogo místico entre o verde profundo das plantas, uma tonalidade magenta da terra e o doce azul do céu. Os arranjos orquestrais que marcavam a apropriação pelo cânone oficial de canções populares nas Brasilianas, quase numa deterioração romântica de Villa-Lobos, são substituídos pela autêntica e melancólica viola. Corrigindo uma falta terrível do filme anterior, agora o ruído do carro de bois, gravado em som direto, pontua toda a construção sonora do filme com o seu lamento tenebroso.
O que talvez esteja numa camada menos imediata é uma transformação muito específica na essência lírico-didática dos filmes anteriores. Não se trata do espetáculo da informação dos filmes de ensino, da depuração da poética rural das canções brasileiras, nem mesmo da idiossincrasia do lado crítico e politicamente radical de O Canto da Saudade (1952). Carro de Bois mantém o didatismo e o lirismo, mas ensina sobre os variados estatutos do carro de bois no que tange a percepção deste objeto e seu desenvolvimento histórico, lançando mão de um rigor formal quase analítico.
Após uma apresentação realista inicial, o carro é mostrado na arte colonial. A identificação do instrumento nas paisagens de gravuras vira um jogo de reconhecimento da sua forma, que progressivamente leva a percepção do espectador a entendê-la. É neste instante que surge o carro como silhueta, contra o sol, demonstrando a passagem dele de objeto a signo pictórico semi-abstrato fixado na mente. Depois o regime realista da apresentação retorna, junto de uma canção. Mas logo outro processo de abstração se inicia com a decomposição em partes do carro. Cada componente é mostrado em planos detalhe num processo de desconstrução que evidencia o carro como objeto intermediário: componentes de madeira entre homem e boi, de existência instável. Novamente um outro segmento realista, com narração e canção, inclusive com os cantos de trabalho genuínos dos carreiros e um uso ostensivo de som direto. Estes retornos são uma simultânea reafirmação do carro como cultura e como real, através de um estilo documentário que prenuncia a releitura de Mauro por Leon Hirszman na crueza da sua série Cantos de Trabalho (1975 – 1976).
A narração realiza então um movimento curioso. Descrevendo a obsolescência dos carros aposentados, ela emula de forma alusiva e indireta a substituição do carro de bois pelos modernos meios de transporte, e por consequência, o processo lento e gradual da morte por esquecimento do modo de vida rural. A desconstrução então retorna, mas agora as partes do carro se espalham pelos gramados, rearranjadas como esculturas diversas. Como se aquele signo se decompusesse, e a partir disso criassem-se variações que pela disposição e enquadramento mimetizam árvores, crânios, navios, coroas de flores. São como túmulos ecléticos que surgem da terra, em homenagem a um tempo que passou. No momento final do filme, essa progressiva reflexão sobre o fenômeno do carro se alia ao contraste sensorial do som e ao jogo de cores.
O último carro-túmulo visto de longe cria um triângulo irregular que se projeta para o horizonte como uma pirâmide, encabeçado pela roda erguida à esquerda. O plano perfil do pássaro no cabeçalho aumenta o sentido de projeção, mas o plano seguinte, igual ao primeiro, mas mais próximo, achata a composição. A montanha centralizada se torna então a pirâmide espelhada pelo carro, adornada numa simetria folgada pelo pássaro à direita – o canto – a flor no centro – a terra – e a roda à esquerda – o trabalho. A flor rosa encima o carro enterrado no verde, sob o céu azul, reforçando a tríade cromática. Soam arpejos de viola. Em seguida, as colinas verdes tomam conta, relacionando o verde ao dia. Entra o som do ruído do carro. Então, o céu azul-arroxeado do anoitecer, e o canto do carro se mantém, se transfigurando em fantasmagórico por se manter durante a noite. Ele se abstrai assim como a paisagem, tornando tudo aqui num eco, numa “saudade no infinito”. Fade-out.
Este aspecto elegíaco do anoitecer gradual, com a dispersão da memória em um espectro que desaparece, é quase idêntico aos finais de O Canto da Saudade. No final do conto narrado pela professora, o fazendeiro Januário grita o nome de Galdino sobre paisagens das suas terras, metaforizando a morte do sanfoneiro. No final do filme em si, na contemporaneidade em que a lenda é lembrada, a sanfona ecoa pela paisagem, reapropriada pela música do povo. Este motivo visual e sonoro retoma o tema do campo perdido, mas no lugar da idealização do bucólico, realiza um lamento inelutável, que reafirma os ecos da História na insistência irresoluta. Mas além do componente sentimental temático, a estrutura do filme se assemelha quase a uma experiência fenomenológica. Num movimento de recuo e aproximação, o objeto não é mostrado como unívoco, mas aparece, mesmo que num fluxo imperceptível à primeira vista, em seus diversos estatutos.
Cineasta da saudade do que passou, a linguagem de Mauro, no entanto, sempre se modernizou. Pode parecer à primeira vista anacrônico um curta sobre o carro de bois em plena década de 1970: outro retorno nostálgico de um cineasta perdido em ilusões. Mas talvez seja nesta guinada final, que resgata, mas reconfigura, toda uma História de um país e de uma obra, por uma mudança no sentimento em relação à morte e nas sutilezas da construção formal, que Mauro tenha sido mais moderno.