Meshes of the Afternoon, de Maya Deren, é hoje um dos clássicos do cinema de vanguarda, uma referência que manipula o tempo através das possibilidades que abre o cinema como meio fotográfico.
Por Carolina Azevedo*
Maya Deren foi uma das maiores expoentes do cinema de vanguarda norte-americano, um cinema de transgressões e questionamento, mas ainda um espaço limitado para mulheres, como ela mesma. Atriz, diretora, teórica, poetisa e etnógrafa, Deren é dona de um cinema inovador e provocativo, que ressoa aos dias de hoje como uma voz revolucionária no mundo das artes. Nascida em Kiev no ano da revolução, ela emigra com seus pais em 1922 aos Estados Unidos, onde estuda jornalismo e artes e se casa com Alexander Hammid, com quem vive em Los Angeles.
Com Hammid, Deren realiza um de seus principais curta-metragens, o extraordinário Meshes of the Afternoon. O filme foi gravado em duas semanas e meia, na casa de Los Angeles do casal, com equipamento super-8 primitivo e estrelando eles mesmos, sem roteiro ou preparação qualquer. Um dos principais filmes da vanguarda surrealista da década de 40, o curta baseia-se na repetição e variação de cenas anteriores para contar a história de um sonho cuja força criativa torna-o realidade.
A primeira cena mostra uma mão, longa e delicada, depositando uma flor no asfalto. Uma jovem — representada pela própria Maya Deren — anda pela estrada e pega a flor quando vê uma figura escura com face de espelho em sua frente. A jovem deita-se em uma poltrona e então a cena anterior desenrola-se em um pesadelo em espiral, composto por cenas de repetição que interligam a jovem, a figura e quatro objetos: a flor, uma faca, uma chave e um telefone.
Deren se transforma em três imagens de si mesma, que hora correm pelo jardim atrás da figura misteriosa, hora repousam sobre a poltrona e hora andam freneticamente pelas escadas ou manuseiam os objetos. A estrutura do filme envolve stop-motion, sobreposições e uma narrativa absolutamente caótica, o que confunde o espectador, evocando a imagem do pesadelo, o inconsciente amedrontado expresso em filme.
Maya Deren diz que o filme expressa as experiências interiores do indivíduo. Ao invés de representar um acontecimento como alguém o perceberia no exterior, ele reproduz a forma como o subconsciente do indivíduo desenvolve, interpreta e elabora um evento simples em uma experiência emocional complexa. Objetos e situações têm o valor simbólico do trauma, assim como a sequência inicial do filme representa o incidente e o resto da trama como ele ressoa na mente da personagem através do sonho.
Meshes of the Afternoon é essencialmente um sonho, uma parcela da realidade transformada em momentos desconexos mas carregados de sentido. Cada objeto ganha uma vitalidade perversa, como se fossem eles os vilões da história. A chave que é observada pelas três versões da personagem, o telefone que some e ressurge nas escadas, a flor carregada pela figura fúnebre e a faca, que representa o elo entre a realidade e o sonho, cuja intensidade transforma imaginação e realidade, culminando na morte da personagem ao fim do filme.
Mas foram muitos os que representaram os sonhos através do cinema, de Cocteau a David Lynch, mas o que diferencia o filme de Maya Deren e o coloca como uma referência no cinema experimental é a forma como ela utiliza da arte cinematográfica para distorcer o tempo, criando uma atmosfera funesta e ainda onírica, apenas com casa como cenário e alguns objetos comuns.
O filme explora a dimensão temporal do cinema ao colocar conhecimentos e artifícios técnicos a serviço da história, a fim de expandir a expressão fílmica. A diretora escreve, em seu ensaio Cinema: o uso criativo da realidade, que a montagem de um filme cria a relação sequencial que proporciona um sentido novo ou particular para as imagens de acordo com sua função. Seguindo a ideia de Kuleshov, ela defende que a justaposição de imagens transfigura a realidade sem empobrecê-la.
Dado isso, ela lembra que a estrutura de um filme é sequencial: independente de seu modo de construção ou objetivos, as imagens são seguidas de outras imagens no espaço e tempo, sejam elas ordenadas ou não. Isto é, a ação criativa no filme ocorre sempre em sua dimensão temporal, sendo o cinema inevitavelmente uma forma de tempo, pois filmar é basicamente manipular o tempo, e Deren o faz muito bem em sua obra.
O curta em questão utiliza de tais técnicas de modo a transformar a realidade em sonho, e transformar o sonho em um pesadelo cheio de camadas, reviravoltas e até mesmo desfechos desconexos. Viaja-se no tempo e espaço das mentes de Deren e Hammid, sendo um exemplo concreto a cena da escada: a jovem avista a figura e a faca e desce as escadas com um olhar horrorizado, sempre encarando a câmera. Sua imagem desde os degraus quase que um a um, uma imagem estática, fotografias que conectam-se tornando aquele momento em uma longa cena de tensão e estranhamento: o tempo foi manipulado para tal efeito.
Além disso, a própria estrutura orgânica do filme é composta essencialmente pela manipulação do tempo através da repetição de cenas transformadas em uma coreografia de horror, uma reiteração que evoca justamente o que se vê quando se tenta relembrar fragmentos de um sonho na manhã seguinte. Para a diretora, esse artifício relacionado ao tempo é uma ação criativa exclusiva ao meio cinematográfico por ser um meio fotográfico, em que é possível a captura do tempo e a consequente manipulação dele.
Em Meshes of the Afternoon, Maya Deren utilizou-se de sua teoria a respeito da manipulação do tempo para revolucionar o cinema e levá-lo para além da realidade, capturando a mente do indivíduo perturbado por imagens de um sonho cifrado. Para ela, o cinema deve fazer tal qual a ciência e explorar as disciplinas inerentes ao meio, redescobrindo seus próprios modos estruturais e explorando os novos campos e dimensões, apenas assim a arte atingirá seu potencial fílmico.
*Sobre a autora: Carolina Azevedo é estudante de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e editora-chefe da Revista Vertovina. Tem como principal interesse o cinema, sobretudo quando a arte se transforma em meio de mudança social, grito dos silenciados e resistência.
Referências:
P. Adams Sitney, Meshes of the Afternoon, Ritual and Nature, 1974, Oxford University Press, Inc, ISBN 0–19–514885–1
DEREN, Maya, Cinema: o uso criativo da realidade, In. Devires, Belo Horizonte, V. 9, N. 1, P. 128–149, JAN/JUN 2012
DE MORAIS, Rafaela do Nascimento, MESHES OF THE AFTERNOON: THE POSSIBILITY OF POETIC CINEMA IN MAYA DEREN’S FILM, UFSC, 2004
Taylor, Terri Lauren, You have to come a long way — from the beginning of time — to kill yourself: Feminine desire in Maya Deren’s “Meshes of the Afternoon,” “At Land,” and “Ritual in Transfigured Time”. Southeastern Louisiana University. ProQuest Dissertations Publishing, 2014. 1569741.