Em entrevista, Matheus Pestana conta o papel da organização Cine Limite frente ao descaso do governo em relação ao histórico acervo do audiovisual brasileiro.
Por Carolina Azevedo
O cinema brasileiro enfrenta hoje um perigoso caso de negligência governamental. Além da falta de fomento à produção e à exibição de filmes nacionais, o que ainda restava da arte cinematográfica brasileira hoje queima. A arte deixou de ser prioridade no país há anos, mas o que ocorre hoje se parece mais com um projeto de destruição do que simples falta de cuidado, como atestam cineastas que, em grito de socorro, escrevem à francesa Cahiers du Cinéma.
Em 7 de agosto de 2020, o governo federal foi até a Cinemateca Brasileira “pegar as chaves” da instituição responsável pela preservação da História do Brasil através de seu patrimônio audiovisual, ocasionando em seu fechamento por tempo indeterminado. Já em 12 de abril de 2021, os trabalhadores da Cinemateca Brasileira publicam um manifesto em alerta aos riscos que o maior acervo de cinema brasileiro corria naquele momento. No dia 29 de julho de 2021, o acervo da Cinemateca Brasileira queima, e o governo, responsável pelo patrimônio e por todo seu acervo, não faz nada.
Nesse contexto, surge a organização sem fins lucrativos Cine Limite, com o objetivo de trazer visibilidade nacional e internacional à arte cinematográfica brasileira. Em entrevista para a Revista Vertovina, Matheus Pestana, programador cultural e curador da Cine Limite, conta um pouco sobre o momento que vive hoje o cinema no Brasil e o papel da organização.
Matheus relata que o objetivo da Cine Limite é promover o intercâmbio cultural entre o Brasil e, por enquanto, os Estados Unidos, ambicionando a expansão do alcance do projeto a outros países. Para tal, organiza-se a curadoria de filmes e o contato com instituições e acervos, que garantem o acesso aos filmes que serão distribuídos nas mostras da organização. O conteúdo programático também conta com textos e material acadêmico sobre aquilo que está sendo discutido, fomentando a produção de conteúdo acadêmico a respeito dos diferentes cinemas nacionais. Todo esse processo vem acompanhado de traduções do português para o inglês e vice-versa, de modo que ambas as culturas tenham a possibilidade de explorar o conteúdo exibido.
A organização vem com o papel de expandir o público do cinema nacional, visto que a culpa de acontecimentos como o descuido da Cinemateca não recai inteiramente sobre um governo negligente, mas uma sociedade que cresceu sem o acesso a sequer uma única obra do cinema clássico brasileiro: um país que não conhece sua arte não tem motivos para defendê-la. Matheus lembra que “nós não temos introdução ao nosso cinema, aos nossos movimentos. Todo mundo sabe o que é a Nouvelle Vague francesa ou o Western americano, mas poucos conhecem o Cinema Marginal ou o Ciclo de Recife”.
A organização percebe, no entanto, que existem outras plataformas que promovem a exibição de filmes nacionais, mas sem o êxito necessário para se chamar atenção e gerar diálogos a respeito de problemas no mundo do audiovisual, visto que insistem nos mesmos filmes e nas mesmas discussões já datadas. Matheus defende que a exibição de filmes “que todo mundo já viu” não é efetiva ao fomentar discussões, ao contrário de mostras em que há a exibição de filmes pouco vistos, “que estavam lá no fundo da gaveta de uma cinemateca”.
A exemplo disso, cita a recente mostra de cinema capixaba organizada por eles, em que foram exibidos filmes de Ludovico Persici, um dos primeiros cineastas brasileiros e inventor, cujos filmes foram esquecidos por mais de 100 anos, até serem restaurados, nos anos 2000, e finalmente exibidos pela Cine Limite neste ano, o que gera, como lembra o entrevistado, um novo diálogo, atraindo pessoas a esse cinema jamais explorado.
Afinal, o objetivo real por trás da organização é “fazer as origens do cinema brasileiro ficarem na língua do pessoal, não só do pessoal daqui de dentro, mas principalmente do exterior,” e é exatamente ressaltando movimentos inéditos que isso tem sido feito com maior êxito, de modo a trazer um retorno interessante aos organizadores da Limite.
Matheus conta que, em um ano de Cine Limite, o público atingido tanto nas exibições quanto nos artigos publicados tem sido extremamente satisfatório: os filmes vêm adquirindo visualizações equivalentes a salas de cinema inteiras e o site chegou, mês passado, a mil e setecentas visitas apenas nos artigos. Esse crescimento fenomenal, no entanto, não foi o bastante para impedir desastres como o incêndio na Cinemateca, e é exatamente por isso que Matheus chama atenção para a importância de se levar notícias sobre o que ocorre no país para o exterior, visto que essas notícias sequer chegam ao público.
A organização surge como pioneira nesse local que nasce nas mídias digitais para o fomento do cinema e audiovisual nacional mundo afora, fazendo aquilo que deveria estar sendo feito há muitos anos pelo próprio governo:
Consumir e dar um olhar novo — e não digo uma vida, porque ele só está guardado, pegando pó — pra esse cinema, discutindo-o, é um gesto de resistência ao silêncio que eles vêm sofrendo do próprio governo. Consumir o repertório do cinema brasileiro é um ato de resistência cultural.
A Cine Limite exibe, a partir de hoje (15), três filmes do cinema clássico LGBTQ+ produzidos durante a ditadura. O programa “Mouths Don’t Say Everything” three decades of LGBTQ+ cinema” traz, até 15 de outubro, Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora (1968), A Rainha Diaba (1974) e Vera (1986), além de entrevistas e artigos sobre o tema.