De Obayashi a Takashi Ito: Como o cinema nipônico estabeleceu um diálogo entre tempo e memória

Como os autores japoneses conseguiram fazer com que a mise-en-scène alcançasse uma nova dimensão a partir da relação entre tempo e memória.

Por Matheus Fortunato*

Seja nos filmes durante a Segunda Guerra de Kenji Mizoguchi, na Era de Ouro com Akira Kurosawa, Mikio Naruse e Yasujiro Ozu, na Nova Onda com o surgimento de autores como Nagisa Oshima ou até mesmo com o começo dos Pinku e a popularização do Anime, em muitos momentos o cinema japonês demonstrou uma capacidade única de desenvolver narrativas. Dito isso, autores como Kiyoshi Kurosawa, Naomi Kawase, Nobuhiko Obayashi, Nobohiro Suwa e Takashi Ito apresentaram ao espectador uma nova forma de dialogar com o tempo e a memória. Entre os citados, os que mais se destacaram fazendo isso foram Nobuhiko Obayashi e Takashi Ito.

Após um longo período produzindo curta-metragens e comerciais, Obayashi ficou popularmente conhecido por seu trabalho em Hausu (1977), seu primeiro longa-metragem. Esse foi o filme que deveria ser no Japão o equivalente ao que Jaws (1975) foi nos Estados Unidos, pelo menos era a intenção da produtora Toho Co. com sua realização. Consequentemente, Hausu foi seu filme mais difundido nos diferentes nichos do meio cinéfilo, chamando bastante atenção da crítica na época e hoje devido às diferentes maneiras com que Obayashi explora e experimenta a mise-en-scène, usando muito de efeitos visuais e do uso de câmera.

Nobuhiko Obayashi e Kyoko Obayashi em um set de filmagem.

Ao longo de sua carreira, teve como fiel produtora sua esposa, Kyôko Obayashi. Nessa função, ela teve uma importante atuação em vários filmes do diretor e também é um dos motivos pelos quais ele fez tanto sucesso como artista, já que ela sempre esteve ao lado dele em todas as produções. Apesar disso, seu nome foi creditado apenas após a produção do sexto filme comercial de Obayashi I Are You, You Am Me (1982), quando Satsuya destacou o importante papel que Kyoko fazia e normalmente ia além do papel de produtora. Muitos membros da equipe de filmagem de Obayashi relatam que ela conseguia criar uma atmosfera única nos sets, o que era fundamental para ajudar Obayashi a desenvolver seu trabalho.

A filmografia de Obayashi sempre teve algo de especial que o diferenciava da maioria dos outros cineastas. Quando ele optou por dialogar com temas como o tempo e a memória não foi diferente, principalmente em filmes como Casting Blossoms to the Sky (2012), Hanagatami (2017) e Labyrinth of Cinema (2019). Os dois primeiros filmes fazem parte de uma trilogia de guerra do diretor que começa com Casting Blossoms to the Sky (2012), seguido de Seven Weeks (2014) e terminando com Hanagatami (2017). Entre essas obras, o trabalho em que Obayashi conseguiu trabalhar com maior profundidade sobre o tema foi em Labyrinth of Cinema.

Obayashi se dedicou ao filme como se realmente fosse seu último trabalho, pelo menos era pra ter sido. Em 2016, quando os médicos o diagnosticaram com câncer, disseram que ele tinha entre seis meses e um ano de vida. Felizmente, Obayashi saiu ileso, terminando as filmagens de Hanagatami, apesar de posteriormente tendo algumas complicações de saúde. Retornou a Seijo quando decidiu produzir seu mais recente trabalho e até então o que viria a ser seu último filme.

Labyrinth of Cinema é similar às últimas obras do diretor, não sendo apenas um retrato da história do cinema, mas também uma forte crítica ao passado recente da humanidade repleto de guerras e atrocidades. Uma das maiores qualidades do filme e do Obayashi é conseguir retratar isso sem deixar o filme declaradamente sombrio, visto por um grupo de espectadores locais em um cinema de Onomichi que também se juntam ao filme e participam dele até o final do longa.

Obayashi usa poemas do escritor Chuya Nakahara para transitar entre cenas, guiando e amplificando a experiência do espectador.

Em certo momento um dos personagens do filme diz: “A história é caótica, como vocês podem ver”, o que descreve não apenas a história da humanidade, mas também reflete o próprio filme de Obayashi. Longe de ser um ponto negativo, a experiência do filme não é das mais amenas: se a ideia aqui é que o espectador se sinta um pouco desconfortável com toda a narrativa e o visual caótico, o diretor faz isso com extrema clareza. É por isso que toda a experiência em Labyrinth of Cinema é única, não apenas visualmente, assim como todo o trabalho do Obayashi.

Uma cena de Labyrinth of cinema (2019)

Diante disso, uma das perspectivas mais fascinantes de Labyrinth of Cinema é de encontrar uma maneira de fixar o nosso passado em nosso presente, com a intenção de que isso seja suficiente para mudar o nosso futuro. Ou seja, é sobre jamais esquecer quem ficou no passado, para que outros possam ter a liberdade de viver seu futuro. Obayashi foi uma grande mente e uma das mais criativas do cinema japonês, o filme em questão é a prova disso.

Cena de The Moon (1994)

Takashi Ito foi outro cineasta que desenvolveu muito bem no cinema a ideia de Tempo e Memória. Sendo até mais experimental que Obayashi, ele criou um estilo próprio onde utiliza de diferentes meios para aproveitar o máximo do plano. Ito teve como foco em seu trabalho o extremo uso de fotografias e de frames únicos e sempre buscando alcançar um elemento: o espaço-tempo.

A partir de Photodiary 87 (1987), a obra de Ito vai passando por um caminho mais autobiográfico, quando o diretor realiza o incessante uso de fotografias em momentos onde há uma relação familiar presente no curta. Em The Moon (1994) a relação familiar fica cada vez mais presente em sua obra. De maneira sombria e até mítica, o diretor desvenda momentos de pai e filho, ao mesmo estilo de sempre, deixando a narrativa de uma maneira mais distorcida e contemplativa, o momento mais obscuro é a projeção do rosto da criança na sombra misteriosa. Todo o filme é bem enigmático pela forma com que Ito utiliza dos elementos presentes para ressignificar os seus planos.

Cena de December hide-and-go-seek (1993)

De forma definitiva, a relação paternal fica ainda mais acentuada em December Hide-and-Go-Seek (1993), onde Ito filma deixando um pouco de lado o extremo experimentalismo e opta por uma via mais narrativa para tentar estreitar ou pelo menos dimensionar os sentimentos dele por seu filho.

Portanto, a construção da ideia de Tempo e a Memória foi muito bem assimilada por autores como Nobuhiko Obayashi e Takashi Ito, que definitivamente alcançaram uma nova essência narrativa para dialogar com o espectador, seja no cinema extremamente visual e anárquico de Obayashi ou no maximizado cinema experimental e familiar de Ito.

*Sobre o autor: Matheus Fortunato é estudante de Administração, é apaixonado por cinema experimental e arte em todas as suas formas. Interessado pela maneira com que o cinema possibilita cada pessoa poder experimentar e produzir arte de diferentes meios.

Referências:

Seijo Story: 60 Years of Making Films (2019)

Morgan, Evan. Not the Last Picture Show: Nobuhiko Obayashi’s “Labyrinth of Cinema”. Mubi Notebook, Jan 28 2020. Disponível em:
<https://mubi.com/notebook/posts/not-the-last-picture-show-nobuhiko-obayashi-s-labyrinth-of-cinema>

Aleph. A Brief But Essential Introduction to Japanese Cinema. Acesso em 10 de novembro de 2021. Disponível em: <https://www.faena.com/aleph/a-brief-but-essential-introduction-to-japanese-cinema>

Dahan, Yaron. Ghosts of Time and Light: The Experimental Cinema of Ito Takashi.

Mubi Notebook, Jun 04 2015. Disponível em:
<https://mubi.com/pt/notebook/posts/ghosts-of-time-and-light-the-experimental-cinema-of-ito-takashi>

Visions of Japanese Modernity: Articulations of Cinema, Nation, and Spectatorship — Aaron Gerow

Writing in Light: The Silent Scenario and the Japanese Pure Film Movement — Joanne Bernardi

Where To Begin With The Japanese New Wave — Jasper Sharp