Entre Soldados de plástico e de carne: a juventude no cinema entre hemisférios

Quando a realidade social e econômica entre o hemisfério sul e norte forçaram reações distantes do povo, o que significa um Coming of Age na América Latina?

Por Maria Eduarda dos Anjos

Para quem está acostumado com livros YA sendo adaptados para o Cinema a toda hora, talvez seja surpreendente saber que a ideia de juventude é mais nova do que os pais de alguns. As telonas só receberam pré-adolescentes e adolescentes como protagonistas quando começaram a ser levados a sério socialmente e como público consumidor, depois da Segunda Guerra Mundial. Isso pode ser explicado por um dicionário de termos gringos, como o Babyboom pós-guerra e a Golden Rush Era de prosperidade econômica, mas a vida na américa latina confirma que esse recorte aceito e disseminado academicamente diz respeito exclusivamente àqueles no hemisfério norte, mas é naturalizado no consciente coletivo como sinônimo de Juventude, de J maiúsculo e único.

A adolescência faz 70 anos

Apesar do ser humano sempre ter passado pela puberdade, o primeiro adolescente surtiu mesmo no século 20, quando o intervalo entre ser um adulto e uma criança se alongou em uma categoria própria. Até então, a maturidade hormonal e o repasse de trabalhos correspondiam à mudança de estágio de vida, o que justificava o casamento e constituição de uma família entre os 13 e 15 anos. A evolução e organização da Indústria diminuiu o tempo despendido nessas funções e permitiu um novo arranjo social, e assim, o período de estudo e aprendizado se expandiu para até o começo da casa dos 20 anos. Com o consequente distanciamento do timing de amadurecimento social e do biológico, fica evidente que “a adolescência é um fato cultural, pois o modo como cada sociedade lida com os seus jovens é particular e articulado a todo o seu contexto sociocultural e histórico. A passagem da infância à maturidade, vivenciada como a ‘crise adolescente’, é um produto típico da nossa civilização”, como escreve Luciana Gageiro Coutinho, professora da UFF.

Nos anos 40, nos Estados Unidos, a adolescência começou a ser estudada como um campo próprio na psicologia pela primeira vez e ter uma persona definida. O desenvolvimento neurológico explicou a inclinação para busca por independência e o aumento da capacidade de abstração, dando mais profundidade a assuntos complexos como morte, moral e propósito, explicando cientificamente aquele comportamento questionador e indignado que é tão associado à essa fase da vida.

Apesar de ser subjetivo à cultura na qual aquele adolescente está imerso, a globalização ajudou a espalhar um retrato muito específico da vivência adolescente: americano e europeu. Não é à toa que o marco de sua representação no cinema mundial é Juventude Transviada (1955). O volume e constância dessa importação mudou o consciente coletivo no que diz respeito a como deveria ser a juventude, quais experiências ter, como agir, o que querer e onde estar.

Eles lá, nós cá

Pode parecer exagerado colocar os Estados Unidos como único contraponto dessa discussão, mas como principal produtor de Cinema nos dois últimos séculos, a semiótica norte-americana foi a de maior impacto e alcance no mundo. Durante os anos 60, tanto os Estados Unidos quanto o Brasil tiveram movimentos de contracultura, mas aposto que quando o assunto é abordado o que vem à cabeça são os Hippies, e não a Tropicália. De filme em filme, a História dos EUA é mais uma vez revitalizada e ocupa tanto espaço na mente do público que substitui a cultura local e realidade de seu país por essa visão centrada no hemisfério norte.

John Hughes é conhecido como o pai dos filmes sobre jovens nos anos 80, mas quem realmente é O Clube dos Cinco? A realidade de ter tempo, segurança e condições financeiras para ter a juventude como uma fase experimental não era a de todos os países, e ainda assim era mantido em um pedestal como o modelo de adolescência. Isso também influenciava no que queriam vestir, ter e comer, mesmo que em algumas partes do mundo a realidade não fosse nem de perto tão branca, classe-média e democrática quanto aquela.

A disparidade na interpretação da fragilidade social é um caso cristalino do impacto do cenário socioeconômico na vida de um adolescente no audiovisual e vice-versa. O Brasil tem uma produção média de 128 filmes por ano no período de 2010–2019 segundo a Ancine, mas os títulos de maior repercussão aqui e lá fora ainda são Cidade De Deus(2002), Tropa de Elite(2007) e Central do Brasil(1998), roteiros que contemplam a juventude como marginal. Desconsiderando o mérito da maestria com a qual foram feitos, é impossível negar que a desigualdade social, violência e miséria são uns dos maiores definidores da essência da cultura brasileira, o que tornou impossível se desligar dessa imagem lá fora. O mesmo acontece com países intitulados de subdesenvolvidos, como a Índia, o Chile e o México. Isso dá uma pista à indústria para quais tipos de filme vale o investimento e a divulgação e tira o espaço de outros temas que têm potencial mas não venderiam tanto.

E, obviamente, não é só isso que há na juventude, assim como não é só riqueza que há nos EUA. A desigualdade, pobreza e crime também existem e são temas que têm ganhado uma cobertura elaborada por filmes como Moonlight (2018) e Florida Project (2017), mas são mais um tipo de narrativa, não “a narrativa”. Não estão acorrentados a um tipo de representação para a comunidade internacional.

Soldadinhos de chumbo

Países que passaram por períodos ditatoriais, principalmente aqueles que re-emergiram como uma democracia, trazem o assunto à tona frequentemente devido ao trauma coletivo que causou. Uma nação não consegue só virar a página depois de anos com repressão governamental, vidas e direitos perdidos, protestos de oposição e reverberação política interna e externamente. No Brasil, a oposição de 1965 a 1985 era fortemente

liderada por jovens e uniões estudantis, e a decisão de se juntar ou não era questão de vida ou morte. Marighella(2019) retratou como a integração nessa vida tinha impacto não só neles como em seus familiares e a intensa perseguição e medo que viviam. A morte de uma das personagens crianças em Machuca (2004), longa que se situa nos anos de Pinochet, e a prisão de Mujica na ditadura uruguaia em Uma Noite De 12 Anos (2018) são retratos de como a vida de guerrilha na américa latina é majoritariamente jovem e se confunde de país para país, formulando uma caricatura homogênea de dor e sofrimento para um hemisfério inteiro.

Esses longas são essenciais para a conscientização da população da própria história, mas, de novo, os países não conseguem bancar narrar sua própria trajetória sem eles. Enquanto isso, a mídia norte-americana passou anos se empenhando em manipular o discurso público para que, quando o envolvimento em guerras e lutas sociais fosse mencionado, não definisse seu legado, mas fosse sim um adendo, uma adição brilhante e romantizada, motivo de muito orgulho no seu catálogo. E a juventude poderia escolher seu lado nas batalhas, seja como soldados de ouro, protestantes contra a Guerra do Vietnã, filhos orgulhosos de veteranos, ou simplesmente abstendo-se dos conflitos. Sua existência acontecia apesar de qualquer conflito, luxo que os sul-americanos não têm nem dentro nem fora de filmes.

A jornada de um para dentro de si

Todos crescem — esse é o trunfo do gênero ‘Coming-of-age’. O cuidado com representatividade e pluralização de narrativas em filmes renovam os pontos de vista retratados e conferem ao gênero atualidade vitalícia. Conforme se cria distância do tempo de certos eventos históricos — e aproximação com outros tão traumáticos quanto, infelizmente — caminhamos com a narrativa coletiva e deixamos registrado como pensamos e o que nossos olhos veem.

O espaço comum que se tornou a internet permite uma conversa quase homogênea e constante entre jovens espalhados pelo mundo todo, o que tem aparecido em filmes como um novo chão comum e ponto de identificação universal além dos sentimentos de medo, paixão e exclusão. Apesar do contexto específico de Holly em Oitava Série (2018), de Bo Burnham, qualquer pessoa de qualquer idade consegue se identificar com o estranhamento que relações online podem trazer. A conciliação dessa nova realidade com tradições passadas de forma geracional e geográfica é um dos novos paralelos a serem discutidos por e com os jovens. A alta politização dos setores cada vez mais jovens da sociedade promete trazer narrativas mais sensíveis, aprofundadas e engajadas socialmente. De norte a sul, a produção cinematográfica sempre poderá contar com a indignação e questionamento juvenil ao status quo — é inevitável, é inerente.