
Por Davi Krasilchik*
Dirigido por Gakuryu Ishii, “August In The Water” resgata o poder dos mitos para traçar interessantes relações entre a juventude e múltiplas dimensões da natureza humana
A refração da luz solar decompõe em uma belíssima paleta de cores vibrantes. Raios luminosos se tornam maleáveis perante corpos líquidos, respeitando a volatilidade de sua natureza e se espalhando através da mesma. Registros da mera interação entre elementos naturais, engrandecidos por uma áurea fantasiosa que apenas a ótica cinematográfica é capaz de oferecer, recebem o espectador que acompanha o belíssimo “August In The Water”.
Afastado da água por uma superfície de vidro, o jovem Mao (Shinsuke Aoki) testemunha um grupo de golfinhos nadando. A iluminação que emana do aquário completa o seu rosto, concedendo ao mesmo um aspecto supranatural em função de seus tons de azul. Esse deslocamento em relação ao real é ainda amplificado pela interpolação de frames que substituem os animais ali presentes por imagens de uma jovem, Izumi (Rena Komine), exímia nadadora que não por acaso é também a paixão de nosso observador.
Tem-se assim o distanciamento entre o homem e a natureza, seja a última literalmente traduzida pela manifestação de fenômenos ou simbolizada por desejos pessoais que nos condicionam a viver. Sintetizando perfeitamente as principais temáticas abordadas pela obra, em pouquíssimos segundos é oferecida a lógica da busca pelo equilíbrio, jornada particularmente desafiadora quando se está na juventude.
Nas mãos do diretor Gakuryu Ishii, é evidenciada uma forte abstração dos dilemas proporcionados por essa fase da vida para o campo das manifestações físicas do meio que nos permeia. São numerosos os planos, por exemplo, que utilizam da distorção da imagem provocada pelo calor intenso, dificultando a visualização de determinadas passagens com naturalidade. Além da óbvia afetação que isso traz à plástica das imagens construídas, tais segmentos geralmente incluem a queda literal de pessoas contra o chão, incapazes de resistir às ameaças da natureza.
Dentro da lógica da narrativa, que mostra a já mencionada dupla de protagonistas em uma tentativa de resolver uma violenta crise hídrica e a misteriosa chegada de dois meteoritos, essa construção fortalece um alerta à crescente desconexão entre o homem e o mundo, tônica que se ramifica nas mais diversas direções adotadas pela obra.
Em um âmbito científico, por exemplo, presente desde os testes em animais — conforme a cena inicial — que os encapsulam em ambientes controlados, até as ponderações das personagens sobre chips cerebrais que robotizariam o viver, fica clara a denúncia das tentativas ingênuas de superação da própria humanidade.
Seja pela crença em um sistema operacional que seria capaz de calcular as probabilidades de um relacionamento amoroso funcionar, ou, de forma mais indireta, pelos planos que evidenciam, no treinamento excessivo de Izumi, a mecanização de seu próprio corpo, não são poucas as ferramentas que corroboram para esse descompasso entre a nossa espécie e aquilo que a permeia.
Ainda nessa dimensão, não são poucos os quadros que contrapõem a natureza e as sequelas do desenvolvimento humano. Não suficiente, é interessante também como a retratação da primeira ainda se dá em imagens extremamente planificadas, obtidas pela escolha de lentes que comprimem a vasta extensão de horizontes ensolarados.
Imersos nessa crise generalizada, é justamente a improvável busca por resoluções que metaforiza o amadurecimento da dupla de jovens, que ao decorrer do longa se converterão em especialistas na decifração de símbolos. Unidos, e transparecendo nesse sentido uma conexão amorosa que jamais poderá ser racionalmente justificada, acabam ditando então alguns dos planos mais refinados da obra, e que paradoxalmente transparecem uma tridimensionalidade ainda mais realista que as imagens que retratam o arruinamento do ambiente.
Isso se torna mais frequente principalmente a partir do acidente súbito sofrido por Izumi. Quando naturalmente deveria ter tirado a sua vida, ele acaba resultando na incorporação de habilidades sobrenaturais. Entre truques como a telepatia, por exemplo, o que mais se destaca é a forma como se converte em uma espécie de extensão onisciente da própria natureza. Dessa forma, se torna a mais capaz de solucionar a situação.
Indo mais a fundo, todavia, é necessário observar como a ótica predominante da narrativa é justamente a de Mao. Nesse sentido, sua amada acaba convertida em um verdadeiro signo diante de seus olhos, imbuída do papel de guiar a própria vida do protagonista. Isso levanta uma rica discussão sobre os limites entre a ciência e a fé, sendo difícil determinar se as ações de Izumi são realmente concretas ou se seus efeitos seriam provocados justamente pela crença depositada neles próprios.
Em outras palavras, a paixão nutrida entre ambos localizam a importância do “mito” no que tange à intermediação das relações entre o homem e o cosmos — mito este que, inclusive, os personagens tentam, em muitos momentos, transportar para um campo mais literal, materializando-o no formato de rochas e signos astrológicos que passam a investigar. Se tornando uma grande estudiosa desses últimos, e transformada em uma verdadeira entidade após superar a finitude da humanidade, Izumi se converte então em uma figura mitológica, descrita em narrativas tradicionais japonesas e assim desnorteando os limites entre o real e o imaginário.
No que tange à juventude, é belo testemunhar como isso dialoga com a questão amorosa. Buscando se compreender e a melhor forma de se relacionar com a natureza, Mao enxerga em seus sentimentos a fonte mais efetiva para seu autoconhecimento, investindo nessa aventura do conflito contra fenômenos naturais por ter como combustível o amor por Izumi.
Finalmente, basta ainda notar como essa linha de amadurecimento corrobora para um jogo com a própria linguagem cinematográfica. Por oscilar entre imagens mais comprimidas e plastificadas e outras — geralmente presentes nos momentos dedicados a detalhar as dimensões e cores de elementos mais específicos do meio, tais como rochas e folhas umedecidas por orvalho — melhor trabalhadas, essa dualidade conversa fortemente com a incerteza que muitas vezes sentimos em assumir como genuínos determinados símbolos.
Seja pelas inseguranças geradas pelo amor ou pela relutância em reconhecer nossa própria limitação perante as incógnitas do universo, “August In The Water” é assim um belíssimo conto fantástico acerca da necessidade de se deixar confiar, em determinados momentos, nos mitos que parecem ordenar o nosso cotidiano, evidenciando a urgência em se deixar reconhecer que, em determinados casos, o desordenamento se aproxima do estado mais natural que podemos alcançar.
Fontes:
https://asianmoviepulse.com/2020/05/film-review-august-in-the-water-1996-by-gakuryu-ishii/