Juventude, amarga esperança

Por Luiz Afonso Morêda*

Quando Nicholas Ray realizou Amarga Esperança (1948), ele não era exatamente jovem, já tinha perto de 40 anos de idade, sem dúvidas um realizador cuja carreira demorou até demais para começar. De qualquer forma, é admirável a jovialidade, o frescor libidinoso que percorre o filme de estreia do cineasta. Porque se Ray já era quase um homem de meia idade, suas personagens em Amarga Esperança, em compensação, são das mais frescas e pueris representações da juventude no cinema. Parênteses: digo suas personagens pois embora não tenham sido exatamente escritas por ele, foram adaptadas de um romance de Edward Anderson, só existem a partir da representação que ele lhes dá.

Bowie, um jovem que fora preso aos 16 anos, e aos 23, que é quando o filme começa, finalmente escapa da prisão, junto com seus companheiros, homens velhos, experientes, Chickamaw e T-Dub. Eles buscam abrigo na casa do irmão de Chickamaw, o pai de Keechie, uma garota que parece nunca ter saído de casa, mantida sob as asas do pai e dele cuidando. Eis que a juventude entra em jogo e a vida começa: Bowie e Keechie fogem juntos.

Os dois são os únicos jovens do filme (salvo Alvim, o filho do dono de uma pousada, de quem pretendo falar mais na frente), o que faz com que diante de um mundo hostil, que nada faz a não ser perseguir esses dois criminosos, fugitivos, eles sejam a resiliência, a resistência, a faísca jovial que busca, a todo custo e contra tudo e todos, uma existência digna — amarga esperança.

Por um lado, a representação da juventude parece ser como uma tábula rasa, um terreno fértil para o mundo exercer sua influência: Bowie é diversas vezes indicado como alguém influenciável, que facilmente cede a pressão dos companheiros. Keechie tem uma personalidade mais forte, mas é igualmente influenciada pelos sonhos do consumismo. Tanto Bowie quanto Keechie pareciam esperar, ansiosamente, por uma oportunidade de exercer seu devido papel na sociedade: ele de homem provedor, ela de esposa cuidadosa — aquilo que eles aprenderam ser o certo, a “correta” versão de homem e mulher.

Não à toa, quando ele oferece a ela o relógio que comprou, naquilo que deve ser uns dos mais singelos planos-contraplanos que pode existir, sinal de um realizador espirituoso, a primeira reação da menina é de espanto, como descrente de que merecia essa gentileza, e ao mesmo tempo contente porque esse amor de certa forma é algo que ela sempre esperou.

Por outro lado, dá para ver, principalmente em Bowie (não podemos esquecer que o filme é essencialmente de uma perspectiva masculina), uma vontade de se diferenciar, de exercer um papel social comum, mas ao mesmo tempo romper com certas coisas e ser quem se é (basta pensar nos conflitos com Chickamaw e T-Dub, que querem convencer o garoto a cometer mais crimes e são a própria representação de um destino a ser evitado). A juventude é, dessa forma, essa energia vital que pulsa e o empurra na direção desses desejos — algo que, de novo, com exceção de Keechie e Alvim, nenhuma outra personagem tem, a não ser uma externa ao filme: Nicholas Ray.

O cinema de Ray, como Jacques Rivette bem apontou no seu texto sobre Paixão de Bravo (1952), é o de uma certa simplicidade formal, uma falta de artifício, uma indiferença a elementos como plasticidade e décors. Para usar outra expressão dita por Rivette, uma verve de imaginação que encontra justamente na falta de recursos um caráter poético e seu potencial expressivo. Isto é, são filmes que contam uma história e o fazem a partir de recursos básicos, essenciais àquilo que chamamos de clássico no cinema: a narrativa, a encenação, a decupagem, montagem. Em suma, a simplicidade a qual ele recorre evidencia a força desses elementos; um filme de Nicholas Ray é o filme mais filme de todos, a encarnação perfeita do cinema clássico — ainda que alguns o chamem de moderno, mas essa é uma discussão muito profunda para entrarmos aqui.

Realizar uma produção sob esses moldes é a prova da juventude que habita o diretor. É precisamente essa crença que ele tem em formas tão básicas do cinema, de acreditar no potencial de um plano-contraplano, por exemplo, que o torna tão pueril quanto o casal de protagonistas de Amarga Esperança — a ousadia é a maior virtude do cineasta. Juventude essa que, levando em conta esse ser o primeiro longa do realizador, é bem razoável. Ray podia não ser mais um homem exatamente jovem, mas sem dúvidas era um cineasta jovem, ou um jovem cineasta.

Deve ser esse o motivo dele optar por retratar Bowie e Keechie de forma tão ingênua, tão jovial. O frescor que o diretor exala ao filmar esses rostos é tão grande quanto o frescor que esses próprios rostos exalam. Um casal que quer, a todo custo, viver aquilo que, de certa forma, lhes é negado. E portanto, quando assistimos aos dois apressados para experienciar todo tipo de coisa o quanto antes (mais um sinal da jovialidade de Ray, querer fazer caber tanta coisa em tão pouco tempo), somos comovidos. Tanto porque de certa forma eles são duas crianças, sedentas por vida, quanto porque isso nos é mostrado sob uma perspectiva tão singela, humilde e crua.

A juventude, em Amarga Esperança, é simples, porque é tudo tão desnudo, e ao mesmo tempo complexa, porque é intercedida por diversos fatores. Ser jovem: processo de amadurecimento, de aprender a ser adulto, de preferência sendo fiel a sua verdadeira essência. Porém, numa realidade tão caótica como a dos Estados Unidos na primeira metade do século passado, essa tarefa não é tão fácil — basta pensar em Alvim, que está aprendendo como agir com o pai, mas não tem grandes opções fora daquele espaço. Bowie tem uma ficha criminal, companheiros a quem sente dever alguma coisa, uma imagem distorcida de sua virulência enquanto criminoso, e é sob essas condições que o seu processo de maturação vai se dá.

Mas graças a Nicholas Ray e a sua predileção por paroxismos, oscilações entre momentos de grande intensidade (que beleza e que contraste maior pode haver do que o que ocorre na cena de Keechie se espreguiçando como um gato e depois dela chorando pela morte do marido?), a vida se torna mais digerível. Esse é o amargor que Ray nos mostra: o mundo é duro, violento, e a esperança em um final feliz provavelmente vai ser esmagada, mas, mesmo assim, ela existe. Ainda pode-se sonhar.

Sobre o autor: Luiz Afonso Morêda é estudante de cinema na FAAP. Artista em constante formação, busca escrever sobre cinema para colocar pra fora aquilo que aprendeu depois de alguns anos estudando jornalismo.

Referências:

https://imagemepalavra.com/2021/09/11/da-invencao-paixao-de-bravo-1952-por-jacques-rivette/