‘Uma peça de Lego com um pedaço de barro’: Clara Chroma sobre ‘Rodson ou (onde o sol não tem dó)’

Clara Chroma dirigiu o longa Rodson ou (onde o sol não tem dó) junto de Cleyton Xavier e Orlok Sombra. O longa, lançado em 2020, foi feito por jovens e incorpora em sua forma e conteúdo uma abordagem inovadora e disruptiva

Por Íris Chadi*

Rodson ou (onde o sol não tem dó) é uma distopia passada nos anos 3000. Aqui, a arte é crime e a sociedade é dominada pelo opressor governo Anarcocrenty. No meio disso, Rodson é um jovem que quer ser tocador de sintetizador experimental e precisa buscar meios de realizar sua arte sob um sol de 2000º.

Combinando política com crises ambientais, Rodson não só trata de ânsias da juventude, como também incorpora uma linguagem inovadora, que mescla formatos e imagens na criação de uma inconstante colcha de retalhos. Essa narrativa inédita nasce da mente de jovens que buscam inspiração no cinema experimental e não se atêm a amarras financeiras.

Clara Chroma foi uma das diretoras do longa e conta à Vertovina detalhes e significações deste filme que já passou por festivais como a Mostra Tiradentes e o Cinefantasy.

VERTOVINA: Como foi o processo de realização do filme?

CLARA CHROMA: Rodson não é uma obra sozinha. A ideia nasceu de duas figuras o Urutau e o Cleyton Xavier, que viajaram juntos de carona pelo Nordeste. Eles foram até Fortaleza e num fluxo criativo, eles escreveram juntos o curta O Sol Não Tem Dó, que é uma raiz de Rodson, um projeto distópico e futurista, de uma criadora perdida na estrada. E eu conheci eles em Niterói, estudando na UFF. Ao longo dos anos, nós fizemos outras coisas. Em 2016, a gente fez o filme “Os anos 3000 eram feitos de lixo”, uma distopia psicodélica. Nosso intuito era fazer uma trilogia. Então a gente fez o ‘Tsunami Guanabara’, no mesmo universo distópico. Aí o Cleyton e o Urutau foram pra Fortaleza e começaram a organizar o filme. Fizeram uma vaquinha, arrecadaram 1.300 reais mais ou menos, que deu pra alugar van e figurino, e foram gravando tudo na gambiarra, no improviso, com os recursos que tinham, super despretensiosamente. Deixamos os atores à vontade, virou uma brincadeira, uma festa. O Rodson é a combinação desses universos dos curtas, o encerramento da trilogia. Eu não participei das filmagens do Rodson, eu fui a montadora, mas entrei também para a direção, porque o filme nasceu mesmo na montagem. Por causa da gambiarra, às vezes ficávamos com lacunas que precisavam ser preenchidas com alguma coisa e é isso que a gente vê na hora da montagem. Precisamos costurar essa história para fazer algum sentido, porque a produção foi muito caótica. Não é o ideal, é o que a gente tinha em mãos. Mas foi um processo massa, uma diversão.

V: Como Rodson reflete o que você e os outros realizadores estavam sentido à época da produção?

CC: É muito difícil fazer uma obra futurista, que mostre um possível futuro do mundo, que não seja extremamente política, de alguma forma, mesmo que na sátira e na brincadeira. Qual é o futuro que a gente imagina? A gente está imerso em um conservadorismo e isso é algo que nos toca muito, como artistas. Esses três filmes partiram muito da ideia de “o que deve ser a arte?”, essas ideias dos fundamentalistas evangélicos e conservadores, de que a arte é depravada, de que a cultura é inútil. Esse discurso nos afeta muito. Mas de uma certa forma, parecia que a gente estava prevendo algumas coisas, por exemplo, a gente colocava algo no filme e via isso acontecendo logo depois. É um pouco da gente captar esse mundo lixoso que a gente vê à nossa volta e querer escancarar isso, porque a gente pode querer disfarçar as coisas ou escancarar a sujeira.

V: Como você vê que o personagem Rodson traz um pouco da inquietação da juventude?

CC: O nosso modo de fazer teve por trás uma vontade de romper com tudo, que nos levou a inventar novas imagens, e eu acho que a gente teve um sucesso massa nisso. E a própria história do Rodson traz um pouco do nosso sentimento de desejar jogar fora uma vida convencional e uma estética convencional, um modo de pensar e agir convencional. A vida normal é um tanto desinteressante para nós e isso gera uma necessidade de romper, que às vezes nos leva a sair no mundo para explorar. E o personagem é um pouco disso também. Ele é uma criança desesperada por romper com a infância e romper com o mundo imposto a ele e se recriar. E essa criança cai no mundão, que é muito pesado e cheio de bizarrices, que empurram ele para todos os lados. E ele fica até meio inerte, meio passivo, meio incapaz de agir por si mesmo, mas ele se torna um corpo-veículo, quase um médium da loucura, em que as forças agem por dentro dele. As forças que eu digo são as forças da experimentação. O Rodson queria ser artista, tocador de sintetizador experimental, era o sonho dele, mas numa cidade do interior ele nunca poderia fazer isso, ele teria que ir pra capital, no caso Fortaleza. E isso acaba tendo a ver com a nossa trajetória também.

V: E além de ser uma distopia política, Rodson é, também, uma distopia climática.

CC: O colapso total da humanidade é algo que eu enxergo como inevitável, não existe maneira de viver como nós vivemos que não vá colapsar em algum momento. Não é que o mundo vai acabar, mas nosso modo de vida vai colapsar, quebrar, ficar muito ruim, entrar em uma era de decadência total, de perrengue universal. Essa fome desenfreada dos seres humanos, que consomem muitos recursos, até o ponto do insustentável: é consumir, consumir, consumir, consumir. Essa é a distopia máxima, a distopia do consumo. Isso é um ponto que a gente toca muito no filme. E o conservadorismo é muito presente nas nossas obras, porque isso faz muito sentido dentro desse contexto apocalíptico. Quando eu olho para os anos 3000, é difícil imaginar uma realidade bonitinha.

V: Quais foram suas referências para criar Rodson?

CC: Muita coisa. Um dos diretores de ‘Rodson’, o Orlok Sombra, vem muito do universo do horror. O Urutau e o Cleyton já têm uma ligação maior com o cinema experimental. Mas como um todo, Rodson traz muita coisa da internet, da televisão, de bizarrices, de reality shows. E de minha parte também, trago muitas referências de mídia e referências psicodélicas do cinema experimental, do cinema estrutural. Mas nossa grande referência é o Festival de Chorume, que tinha filmes super experimentais, feitos com o celular. Nossas referências foram meio caóticas, é até difícil de dizer: vai de ‘Matrix’ a memes. Todo o universo cyberpunk também esteve muito presente para construir os anos 3000, então vieram muitos videogames também.

V: Como foi esse processo de construção da narrativa na montagem?

CC: Transitar entre linguagens era nosso principal foco com o filme, o fio da meada que liga a obra. Ser esse espetáculo de entretenimento como se você estivesse mudando de canal o tempo inteiro. E isso tem a ver por exemplo com a gambiarra do filme: às vezes é mais fácil contar uma parte da história, se você fizer em forma de notícia de jornal ou em forma de videogame numa cena totalmente espetaculosa. Às vezes a gente tinha uma imagem que não significava muita coisa sozinha, mas aí a gente adicionava uma narração e ela adquiria outro sentido que não tinha nada a ver com o sentido original dela, mas dá pra contar toda uma historinha, com poucas imagens, com imagens da internet… esses truques para conseguir amarrar a narrativa. E acaba sendo gostoso e divertido de fazer isso pra quem monta, porque você vai de fato inventando algo. Você põe uma peça de lego com um pedaço de barro. Essa é a ideia. E também a gente também se testou muito pra ver até onde a gente conseguia fazer, experimentando linguagens e nos desafiando. Nem sempre dá certo, eu acho esse filme cheio de defeitos, ele é o que a gente conseguiu fazer.

V: E como você acha que novos cineastas podem encontrar novas histórias e novas imagens para criar algo novo, como vocês fizeram com Rodson?

CC: Isso muitas vezes tem a ver com recursos. O cinema brasileiro não tem dinheiro, os recursos que você tem podem ser utilizados em uma forma tradicional, como a do cinema gringo, que geralmente exige muito dinheiro, ou a gente pode empregar os recursos de outra forma. Você pode usar mais o seu tempo para tentar fazer algo diferente, para gastar onda, experimentar tecnologias. A montagem inclusive é um lugar muito bom para criar mundos quando você não tem muitos recursos, isso é algo que eu recomendo. Não se preocupar com uma estrutura tão tradicional, seja em roteiro ou em técnica. A invenção de linguagens é a resposta à falta de recursos, mas uma resposta necessária e muito produtiva.

*Sobre a autora: Íris Chadi é estudante de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, cineasta independente e roteirista de profissão. No cinema, seus principais interesses se concentram no surrealismo, no medo e em novas formas de se pensar e fazer a sétima arte.