Novo filme de Kleber Mendonça Filho reflete sobre passado, presente e futuro do cinema e de sua memória no Brasil. Confira a reportagem, que nasce de um bate-papo com o diretor logo após a exibição da cópia em 35mm do filme no Cinesesc – SP
Maria Eduarda dos Anjos
Em que ponto um fato acaba e a memória começa? Em um documentário, a existência do segundo leva a uma pesquisa mais aprofundada do primeiro, mais atenta a fatos, dados comprováveis, evidências que dêem credibilidade ao filme. Retratos Fantasmas (2023, Vitrine Filmes), contudo, traça sua narrativa no sentido contrário, partindo da memória, do sentimentalismo que envelopa o Tempo e o Espaço, esses entes mudos que habitam todas as recordações. É um filme de histórias contadas, notas de rodapé verbalizadas que mergulham no ofício de fazer filmes, que no caso de Kleber Mendonça Filho, se mistura com sua própria história.
Somos apresentados ao Recife antigo, ao bairro onde Kleber morou por anos, ao apartamento que sua mãe comprou quando tinha acabado de se divorciar – palco de seus primeiros curtas – e ao centro da cidade. O começo do filme funciona quase como um apanhado dos making-ofs de O Som Ao Redor (2012) e de Aquarius(2016) , explicando como aquelas ficções são também documentais: a casa vizinha que decidiu ser usada por ser uma das poucas que não se transformou em um “bunker”, cheio de grades, com a chegada dos anos 2000; a infestação de cupins no prédio da frente que virou metáfora para a corrosão do tempo no filme com Sônia Braga; o apartamento que era casa-estúdio-set e abraçava atores e vizinhos, que começou assim porque era o que um estudante tinha com o que fazer filmes e acabou virando costume do diretor.
Nenhuma dessas pessoas e lugares foi mencionada por pura ambientação, tudo ali contava com uma parábola do porquê de ser, tinham seu show solo em tela e faziam ponta na história um do outro. Ali, Recife parecia mágica mesmo, com uma vivacidade apagada pelo tempo – “um ar de quem foi abandonado assim, sem explicação” como o narrador descreve, e estava lá para quem quisesse, mas se não gostasse dele, “foda-se”. O que fica é aquela sensação de despedida precoce, de lugares que já foram gigantes e agora não passam de alguns pedaços de tijolo e reboco.
O longa pode ser considerado um filme-ensaio, um documentário fantástico, uma ficção-documental, um relicário; é exatamente o que acontece quando se tenta filmar uma memória.O tempo, no filtro da memória, tem sinais fantásticos.
As histórias que nascem morrem com a gente?
Com certa ironia, o diretor admite em bate-papo no Cinesesc que não fez roteiro na pré-produção: “Esse filme nunca teve roteiro. Ele ia para onde os arquivos, as descobertas apontassem. […] É o filme que fala para você para onde você vai. Se você diz para o filme ‘não, eu discordo, vai por aqui’, não funciona. É o filme que diz que ele vai ser do jeito que ele quer ser. Você tem que ouvir e seguir a montagem” .
A vontade de se agarrar aos ganchos entre assuntos permite uma viagem íntima e cine-cêntrica pelo Recife, fruto de quem passou anos batendo perna pelas ruas, mas também soube pesquisar em cima das lembranças. Os três maiores protagonistas – Cinema São Luís, Cinema Moderno e Trianon – eram o coração cultural da cidade, como contam as memórias do diretor e de todos os recifenses que passaram pela ponte do centro velho em outros carnavais. Em tela, vemos Kleber manuseando arquivos enormes, e, no bate-papo, ele explica como fazer um filme com orçamento largo possibilita esse aprofundamento temático para além da contratação de equipamentos e equipe.
“Eu amo o centro antigo de Recife”, ecoa a voz do narrador e diretor nos primeiros minutos. Não é algo difícil de reparar, mas, na sessão 35mm no Cinesesc, ele confessa que quis apagar o trecho por medo de deixar o filme muito “melô”.
“Pela primeira vez eu consegui formular algo que eu senti quando eu estava filmando a cena. Eu estava no centro do Recife, em um lugar que eu gosto muito, filmando uma cena com boas câmeras de cinema, lentes legais, um ator maravilhoso, um carro cheio de equipamento. E eu me senti bem de estar ali fazendo aquilo. ‘Estou fazendo um filme aqui no centro do Recife’, pensei. E aí eu lembrei de algo que eu falei rapidamente agora na nossa conversa, que é aquele momento em que você está no São Luís, ou no Trianon, e acaba o filme, está todo mundo saindo, e você tem dois metros entre a saída do cinema e a calçada. Ali, você está entre o limite da fantasia e da realidade. Essa foi a melhor explicação que eu consegui até agora nas entrevistas, que não é uma explicação, na verdade é um sentimento.”
O mapa sentimental do centro de Recife, desenhado por Kleber, que nos guia por Retratos Fantasmas (Imagem: Reprodução/Vitrine Filmes)
Pela narrativa de Kleber, o Brasil inteiro ficou sabendo que na Cinelândia havia um prédio que guardava rolos e rolos de filmes de produtoras gringas que o proprietário atual do espaço nega veementemente ter acontecido. Em uma esquina onde poderia haver um vendedor qualquer, havia o homem que revendia os pôsteres e pedaços de filmes jogados fora pelos cinemas de rua, souvenirs aos cinéfilos da cidade. Acontece que ele também foi, por algumas capas de jornal, intitulado como “Herói Brasileiro” em 1985, quando desatracou um navio de petróleo que estava pegando fogo e tinha chance de queimar toda Recife central, se não fosse por este homem. Poucos registros restaram disso, a não ser os jornais que ele mesmo emoldura e aparecem bem no cantinho do filme. Gigantes pessoas na pequeneza do dia-a-dia, que, do contrário, se fundiram com as paredes descascadas do centro velho de Recife.
Um filme sobre a vida, o cinema e a vida do cinema
“É meio triste se apegar a um produto. O problema é que você passa anos indo a esse cinema então a relação fica emotiva e confusa.”
A história desses últimos 30 anos – tanto a de Kleber quanto de Recife – é contada pelo que era e o que deixou de ser, mudanças físicas que são escalonadas quando se vive em capitais e o horizonte muda no ritmo da grana. Do trio de cinemas principais, apenas um segue operante, e não sem esforços: no segundo semestre de 2023, o São Luiz estava fechado para reformas devido a infiltrações que aconteceram no inverno.
Na sua juventude, as fachadas com os títulos dos filmes pareciam comentar a vida urbana. Com o decorrer do tempo, os cinemas se mostraram espelhos perfeitos da situação socioeconômica do país, sendo vendidos para virarem igrejas com o boom das vertentes evangélicas nos anos 90, tentando agregar outros comércios, vender mais coisas, ou fechando com chaves de lágrimas por falta de investimento.
Fachada do cinema São Luís durante a pandemia de Covid-19. As salas foram reabertas ao público em fevereiro de 2022. (Imagem: Jailton Jr. / JC IMAGEM)
Os poucos cinemas de rua que sobraram se tornaram centros de formação de público, comprometidos com variedade de narrativas – em oposição ao cinema de shopping – e parecem estar sempre a um triz de ser mais um que não suportou os tempos modernos.
Mas a cultura vai muito além do lucro: “Um cinema que você, que nunca foi ao Recife, conheceu, o São Luís, hoje, aqui. E é um lugar realmente muito especial. Eu só queria falar que, no caso de Salvador e de São Paulo, com o Belas Artes e com o Palmeiras, no final das contas, as prefeituras precisam fazer uma pergunta que é muito simples: é do interesse da cidade ter um Belas Artes na esquina da Consolação? Ou talvez a cidade prefira ter um supermercado, um banco ou uma farmácia? Acho que a resposta é muito simples, do ponto de vista de cidadania, de cidade. Qual é a melhor cidade?”.
Essa discussão foi posta em pauta em um dos cinemas da cidade que não giram em torno do valor do ingresso, mas sim da programação, que prezam por tirar o máximo que aquela reunião de pessoas em torno de uma tela pode oferecer.
Fazer, distribuir e transmitir filmes brasileiros e com integridade no Brasil é o maior ato de resistência que se pode ter aqui e agora, e nessa questão Kleber e toda a equipe da Vitrine não desperdiçam chances. A sessão do Cinesesc que contou com a presença do diretor foi seguida por debates, além da exibição prévia do curta Recife de Dentro Para Fora, realizado em 1997 pela cineasta pernambucana Kátia Mesel – uma dentre tantas diretoras fantásticas esquecidas pela história do cinema brasileiro, cuja obra felizmente vem sendo digitalizada nos últimos anos. Programas desse tipo são medida ativa de letramento de público, tanto para entender o que influenciou a obra que estão prestes a ver, como também mostrar, pela primeira vez para muitos na sala, o que o cinema brasileiro tem a oferecer.
A impressão de 35 mm de Retratos Fantasmas exibida na ocasião foi realizada em Londres como um rolo especial, destinado a ser preservado na Cinemateca Brasileira, como o diretor comentou em um post no Instagram. É vital para o audiovisual brasileiro quando nomes que estão crescendo nacional e internacionalmente usam dessa projeção para realimentar e resgatar o cinema brasileiro, tanto seu arquivo como os locais que se dedicam a vivê-lo.