Como Scorsese embasa uma de suas histórias mais pessoais em imagens turvas e mediadas, constantemente alterando a perspectiva de seu discurso
Felipe Palmieri
A heterogeneidade de percepção é fato dado da existência humana, e se manifesta em cada característica que delimita o fim da experiência pessoal e o início da coletiva. Traços étnicos e culturais evidenciam-se com mais facilidade, mas em cada um mora a própria interpretação do mundo. O novo longa de Martin Scorsese aproveita-se de todas as barreiras que dividem seus personagens para explorar a maneira mais comum de atravessá-las: a mentira.
Como é frequente na obra do diretor, Assassinos da Lua das Flores é um filme que explora as raízes do sonho americano, que regularmente se resume à ideia de ascensão econômica. O objeto em questão é o assassinato de diversos membros da tribo dos Osage, um povo nativo americano que se tornou a população mais rica do mundo ao descobrir petróleo em suas terras, no início do século XX. A riqueza representa uma mudança na vida e nas tradições deste povo, que, para se aproveitarem da riqueza em suas terras, acabam se juntando ao mundo dos colonizadores brancos. Esse processo representa uma clara cisão geracional: os mais velhos, que viveram seus costumes, e os mais jovens, que vivem em um limbo cultural.
O filme se inicia deixando tal rompimento bastante claro. Os anciões da tribo, dentro de uma cabana, realizam um ritual de sepultamento da própria cultura dentro de uma cabana, ao enterrarem um artefato no chão e orarem. As crianças observam o ritual através de frestas, mediando o ato do olhar em uma separação física. O enfoque no voyeurismo do ato de olhar é talvez a maior constante de Assassinos da Lua das Flores: as respostas estão no intervalo entre olho e objeto, no olhar através de algo.
O núcleo principal de personagens da narrativa é composto por Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), Mollie Burkhart (Lily Gladstone) e William King Hale (Robert De Niro), que carregam um peso muito semelhante na narrativa e englobam as diferenças de perspectiva. Ernest é nossa porta de entrada ao filme: um homem que acaba de servir os Estados Unidos na 1ª Guerra e decide viver junto ao tio para enriquecer. O tio, interpretado por De Niro, é uma pessoa muito influente na já modernizada comunidade Osage, e recebe o personagem de DiCaprio de braços abertos. Lily Gladstone reside em outro lado: ela é uma mulher Osage da geração pós-petróleo, isto é, viveu em muita riqueza ao lado de suas três irmãs, em uma comunidade já permeada por homens brancos.
Entende-se logo de cara a dinâmica deste universo: homens brancos tentam se infiltrar na comunidade Osage, para que possam conseguir se casar com uma mulher nativa e herdar sua riqueza. Ernest se encontra com Mollie trabalhando como motorista. A mediação entre seus olhares é, novamente, evidente: a primeira conversa de ambos é através do espelho retrovisor do carro de Ernest – enxergando projeções um do outro, imagens indiretas. Enquanto isso, King Hale age como um marionetista, tentando influenciar as ações de todos ao seu redor para benefício próprio, mas tudo embasado na imagem que ele apresentou ao mundo. Os Osage enxergam Hale como um homem bondoso e confiável, em uma relação cultivada pelo tempo e planejada nos mínimos detalhes pelo personagem de De Niro. A interação mediada por projeções mantém opaca a relação entre os personagens, de forma que as verdadeiras intenções de cada um não se manifestem nem para a audiência, nem entre si.
Desde o início, a linguagem adotada por Scorsese chama atenção para si mesma, com intervenções narrativas e imagéticas próprias de um documentário. As duas instâncias principais que representam isso são as inserções de “imagens de arquivo” (em geral fabricadas, porém servindo o mesmo propósito formal) no início do filme, que contextualizam o período histórico e a trajetória do povo representado, e, o mais interessante, a mudança constante da figura do narrador. O caráter fragmentado que a estrutura do filme adota é carregado por diferentes vozes, como se cada capítulo tivesse um narrador próprio, tornando a perspectiva do próprio filme variável e não confiável.
No tópico de inserções imagéticas, uma cena em específico carrega imenso valor simbólico. Fotógrafos tentam vender seu trabalho para diversos membros da tribo Osage que estão nas ruas, enquanto outros homens brancos também transitam vendendo sua força de trabalho. A sequência é intercalada com as supostas fotografias que teriam sido captadas, todas em preto e branco, em um exercício meditativo sobre mais um período de transição sendo representado: as últimas imagens do povo Osage.
A franqueza dessa exposição mnemônica retoma a ideia de opacidade, tal como a narração direta, que é o mais próximo da verdade que o filme chega, sem a existência de mediação entre audiência e pensamento. O resto do filme continua alicerçando-se na mentira, e em cada possível imagem que possa distanciar os olhos dos personagens da realidade. Tudo se torna turvo, dúbio e espelhado no desenrolar de Assassinos da Lua das Flores, culminando em dois momentos climáticos diferentes, em que tais alicerces são derrubados drasticamente.
O primeiro, evitando muitos detalhes, é uma conversa que diz tudo sobre os personagens, ao serem confrontados olho no olho, e podendo escolher entre dizer a verdade ou se esconder atrás de mentiras – mentiras, porém, que já não são mais efetivas. A escolha feita no filme é auto evidente. O segundo momento é muito menos narrativo, e retoma a noção de discurso e ponto de vista do filme: uma quebra completa de diegese que aproxima a figura de Scorsese como autor da obra tal qual um documentário, e realoca o contexto do filme para a realidade.
Em ambos níveis, Assassinos da Lua das Flores é uma obra de olhares e vozes plurais, cujos verdadeiros significados residem na obstrução entre objeto e observador, que pode existir de forma tanto concreta quanto abstrata. A noção de performance se torna essencial a este fato, que se apresenta ao final do filme na forma de duas camadas de voyeurismo: o prazer de olhar sem ser pego, e o prazer de performar sendo observado.
Felipe Palmieri é estudante de Cinema na FAAP. Absolutamente fascinado por todas as pluralidades e sutilezas que a linguagem cinematográfica é capaz de abrigar, e pelas infinitas perspectivas que foram e serão materializadas através disso.