Afire é o último filme de verão | 47ª Mostra 

Em seu novo filme, Christian Petzold representa, entre a comédia e o drama de um verão que queima, aqueles que morrem quando amam 

Carolina Azevedo


Afire nasce da ponderação de Christian Petzold do fato de que cada país tem seu filme de verão, menos a Alemanha. O seu novo longa, no entanto, não tem muito do verão francês de Jacques Rivette e de Éric Rohmer, em que as amizades e os amores florescem em finais felizes. Afire – no título original, Roter Himmel, traduzido literalmente como “céu vermelho” – é o último filme de verão de um mundo devastado. 

A ambientação e as personagens renderam ao filme muitas comparações com o estilo de Rohmer, cujo cinema ficou marcado justamente por desdobrar-se à beira do mar, entre amantes e amigos. Apesar da inspiração assumida, em Afire, há algo de errado desde o início, como anuncia o protagonista na primeira cena. 

A sequência de abertura brinca com o terror americano quando o carro dos amigos Felix (Langston Uibel) e Leon (Thomas Schubert) quebra no meio do caminho. Conforme a noite se aproxima, os sons da floresta reforçam a brincadeira de gênero proposta pelo diretor, ao mesmo tempo que começam o show de ridículo ao qual Leon, o escritor, é submetido.  

Ao chegarem ao destino – uma pequena casa de praia pertencente à mãe de Felix, com dois quartos aconchegantes e um teto infiltrado – eles percebem que não estarão sozinhos durante as férias. Nadja (Paula Beer) é a sobrinha de uma amiga da mãe de Felix, e sua presença desespera Leon, que pretendia utilizar do cenário tranquilo da costa para acabar seu livro e encontrar-se com seu editor. 

Conhecido por brincar com o cinema de gênero, Petzold dá um passo a mais no novo filme: entre a comédia que empresta de Rohmer e o melodrama que lhe rende comparações a Hitchcock, nasce a tensão fantástica que primeiro deixou suas marcas em Undine, filme que realizou imediatamente antes deste. 

Assim como no filme anterior, é na personagem de Paula Beer que o fantástico se constrói. Embora demore alguns minutos para finalmente aparecer em cena, Nadja perfuma a tela com sua presença a partir do momento em que os amigos chegam à casa de férias – tanto pelas roupas que se espalham pelo chão e as taças de vinho que se multiplicam pelas mesas quanto pelo ruído que tira o sono de Leon. Maestro do silêncio, Petzold usa do som em duas instâncias ao decorrer do filme: na comédia dos mosquitos e dos gemidos que atormentam Leon e na tragédia dos helicópteros que anunciam a proximidade do fogo. 

Próprio do momento em que é realizado, Afire tem como grande antagonista os incêndios florestais que se alastram pela Europa e devastam florestas nos meses de verão. Desde a primeira sequência, o som terrível dos helicópteros de bombeiros assombram a cena. No início, sem que os vejamos, até que, em cima do teto infiltrado, o olhar dos personagens anuncia o vermelho da floresta, e o som anterior revela sua origem.

O motivo do vermelho do céu mantém sua presença constante em tela através de Nadja. Depois de dois dias enquanto fantasma na casa que divide com os amigos, aparece no jardim vestindo o vestido vermelho que a acompanha nos dias que seguem a trama. O magnetismo da personagem hipnotiza Leon, que esconde a paixão atrás de sua arrogância – o que não impede Nadja de continuar tratando-o com afeição. 

Após manter com constância personagens femininas em foco nos seus filmes, Petzold joga os holofotes sobre o personagem de Schubert, mas sem o carinho que suas outras protagonistas receberam. Além da comédia, Petzold empresta de Rohmer o escrutínio ao qual submete seus personagens egocêntricos e incomunicáveis. Como segue o perfil dos homens dos Contos Morais do diretor francês, Leon é torturado pela pulsão criativa que lhe falta enquanto escritor. Duvidando da qualidade de seu livro, ele se recusa a ir à praia ou ajudar com as tarefas da casa. 

Apesar da zombaria com o personagem do escritor, a literatura tem papel central no filme – como já havia sido feito pelo diretor com a pintura em Barbara, a arquitetura em Undine e a música em Phoenix. É na literatura que o amor deixa de ser pano de fundo e vira central na narrativa. O momento em que Nadja recita o poema The Asra de Heinrich Heine coincide com a mudança abrupta no tom do filme. 

O incêndio, que havia ficado de lado entre o patético de Leon e a graciosidade de Nadja, volta para assombrar os personagens, e a comédia fica cruel. O verão queima, a terra fica silenciosa. O foco da narrativa se desloca, e o que era fluido nas amizades entre os personagens torna-se rígido nos olhares e gestos que eles trocam após a tragédia. Entre as cinzas, o que sobra é o som dos sinos e a presença avassaladora do vermelho místico de Paula Beer. 

Carolina Azevedo é editora-chefe da Revista Vertovina e repórter no Le Monde Diplomatique Brasil.