Como a obra pós-68 de Rohmer desafia o cristianismo e o marxismo na mesma medida em que expõe a hipocrisia dos acasos que compõem seus Contos Morais
Carolina Azevedo
Sob a influência benfazeja da Companhia, nossos costumes estão saturados de acaso
J. L. Borges, “A loteria da Babilônia”
Nada é por acaso. Nenhum signo escapa à ordem Rohmeriana
Pascal Bonitzer, Cahiers du Cinéma nº 214
Primeiro grande sucesso de Éric Rohmer, Ma nuit chez Maud aparece em 1969 como uma obra oblíqua ao momento político e ideológico que o cinema francês vivia. Colocar personagens conversando sobre Deus em uma cama, logo após maio de 1968, foi uma clara provocação vinda do reacionário que havia sido expulso da direção da Cahiers du Cinéma – que no momento do lançamento vivia sua “fase vermelha” – alguns anos antes. Ainda assim, o filme chamou a atenção da crítica e, sobretudo, do público. A uma entrevista que aparece na edição de abril de 1970, a redação da revista prefaceia que “tudo, nesta entrevista com Éric Rohmer, nos opõe a ele,” completando que os defeitos dos narradores dos seus Contos Morais estão igualmente presentes no autor. Eles reconhecem, porém, no filme que guia a entrevista, uma originalidade incomparável no que diz respeito à sua relação entre forma e conteúdo; e, no pensamento do cineasta, que “diferenças jamais serão puras e simples, e que essa impureza e essa complexidade que nos retiveram.”
Tanto pelos mecanismos de sua dramaturgia quanto pelas falas de seus personagens, o filme natalino de Rohmer foge do didatismo para propor reflexões aos diferentes lados do espectro político e moral que regiam a sociedade francesa naquele momento. Na superfície, a narrativa se centra na oposição entre o cristianismo moralista do narrador (Jean-Louis Trintignant) e o marxismo ateu de Vidal (Antoine Vitez), o amigo de infância com quem se encontra, por acaso, na véspera de Natal. Assim como nos outros Contos Morais, é a fidelidade que está em jogo. Desta vez, no entanto, não a uma mulher ou homem, mas a uma ideia, ao dogma que cada um carrega até a mesa do café onde se encontram.
É a aposta de Pascal que movimenta o embate: por que é mais racional acreditar em Deus do que não acreditar? Pois se Deus existe de fato, ganha-se tudo, a vida eterna, enquanto, se ele não existe, não se perde nada – é o conceito de esperança matemática. Jean-Louis condena a rigorosidade do pensamento de Pascal, que “no fim de sua vida” teria passado a condenar toda forma de prazer em nome da aproximação de Deus. Para ele, desejar um bom vinho não faz dele menos cristão; o desejo não precisa ser obliterado pela aposta.
Paradoxalmente, o amigo ateu vê-se muito próximo de Pascal ao transferir sua teoria para o campo do materialismo histórico: “Para um comunista, este texto sobre a aposta é extremamente atual. No fundo, duvido profundamente que a história tenha um sentido. No entanto, aposto no sentido da história, e me encontro na situação pascaliana. Hipótese A: a vida social e toda ação política são totalmente destituídas de sentido. Hipótese B: a história tem um sentido. Não tenho absoluta certeza de que a B tenha mais chances de ser verdadeira do que a A. No entanto, não posso deixar de apostar nela, porque é a única que me permite viver.”
Para os redatores que entrevistam Rohmer para a Cahiers du Cinéma em 1970, escrever um marxista jansenista é de um erro terrível: “podemos dizer de Trintignant que ele é um católico hesitante, não um modelo, vacilante, mas ainda assim católico; ao passo que para Vitez, o que ele diz no filme o torna um não marxista.” Lembrar o método de Rohmer para com seus atores, no entanto, é importante, como ele diz em sua resposta: “Esse texto é de Vitez. O que me deu a ideia de sua personagem foi um artigo de Lucien Goldmann sobre Pascal. Eu havia escrito no meu roteiro algumas frases inspiradas por essa leitura, mas que precisavam ser reformuladas. Vitez, quando lhe ofereci o papel, disse-me imediatamente que amava Pascal e que tinha muito a dizer sobre ele. Então decidimos proceder como em La collectionneuse: sentamos na frente de um gravador, conversamos sobre Pascal e foi assim que escrevi a cena do café. Tomei as palavras de Vitez como as de um marxista, bom ou mau marxista, não importa. Agora, que você mesmo não o considere marxista, isso diz respeito a você.” Diferenças jamais serão puras e simples.
Durante a noite que dá nome ao filme, as contradições se consolidam face à terceira personagem da trama, que também vacila em sua liberdade radical e os desejos que a movimentam. Por trás daquela dualidade, surge uma outra, que rege a maior parte dos filmes do diretor: entre o acaso e a providência. Quando resiste a consumar sua relação com Maud, Jean-Louis julga ter escapado da hipocrisia de que lhe acusava Vidal, mas o desejo que ele se recusa a negar não pode ser tão facilmente apagado, ainda que, no final, sua escolha – com quem se casar? – seja regida pela ideologia e não pelo desejo.
Assim que sai da casa de Maud, o acaso, que já tinha reunido os amigos de colégio naquela situação, lhe carrega em direção a Françoise, a loira católica com quem ele sabia que se casaria desde o início. Françoise abdicou de seu desejo quando um relacionamento passado – marcado pelo pecado da traição – acabou mal. Mesmo que Maud tenha vivido a mesma situação, por não ter abdicado do desejo, não é digna do amor, e, portanto, do casamento de Jean-Louis. Sua liberdade não permite que ocupe o papel de esposa e mãe.
Algo separa os conceitos de aleatoriedade em Maud e em Françoise, diferenciando-os entre acaso e destino, respectivamente. Colocados lado a lado, os conceitos definem mais uma hipocrisia moral do personagem – e quem sabe do autor. O encontro final parece fazer graça do costume do acaso Rohmeriano: depois de toda a conversa que essencialmente compõe o filme, o passado deverá ser esquecido, restando uma conciliação infiel entre acaso e providência.
Carolina Azevedo é editora-chefe da Revista Vertovina e repórter no Le Monde Diplomatique Brasil.