Pressupondo uma triste corrosão da relação mais pura entre imagem e espectador, Aki Kaurismäki decompõe o espaço-tempo em que insere a sua dupla de personagens para redescobrir a potência de se permitir se apaixonar pela Sétima Arte
Davi Galantier Krasilchik
Não é de hoje que presenciamos uma certa obstrução do sentir. Em uma época ditada por estímulos constantes e um deslocamento permanente para o digital, a sensibilidade parece ter abandonado a própria natureza. Tudo ameaça ser modulado por imagens, perdidas entre a sua superfície artificial e níveis mais difíceis de se acessar. É diante dessa petrificação que Aki Kaurismäki conjura o seu Folhas de Outono, resgatando a força que o cinema pode assumir em seu tom mais simples e sentimental.
Levando uma vida apática em plena Helsinque, a desiludida Ansa (Alma Pöysti) e o beberrão Holappa (Jussi Vatanen) pulam de emprego em emprego na esperança de encontrar uma vida melhor. Em uma noite de karaokê, o acaso os apresenta, os convidando a redescobrir a vida na companhia um do outro.
Ainda que o vazio impere no diálogo das personagens com seu microcosmos, e os ventos da noite estejam sempre acompanhados de notícias sobre a atual guerra entre a Rússia e a Ucrânia, temos aqui um filme particularmente etéreo. Etéreo na maneira como imprime um teor quase religioso em suas passagens mais vulneráveis, buscando uma crença nos sorrisos que demoram a eclodir e nos olhares que quebram barreiras espaciais para unir seus dois eixos.
Talvez esse teor não esteja impresso na maneira como as figuras leem seus arredores, guiados por olhares frios e movimentos pouco expressivos. Certos acontecimentos não parecem – apesar de fazê-lo – afetá-los internamente, e as escavadeiras que remexem a estrutura da cidade a transformam de maneira puramente mecânica. Existe um descompasso entre o exterior das personagens e implicações sensoriais que poderíamos esperar em um filme clássico, restando um conjunto de almas errantes soltas pelas ruas. Mas é justamente na superação dessa estaticidade que Kaurismäki advoga um cinema de pequenos gestos e conexões íntimas, dimensionadas pela enorme fé por detrás delas.
Essa transcendência se sobrepõe inclusive às regras do tempo, trazendo anacronismos adaptados a uma realidade paralela, feita sob medida para abrigar o amor entre Ansa e Holappa. Se por um lado essa configuração remete ao afastamento entre os signos modernos e um mundo que não evoluiu por dentro – o notebook em uma loja dos anos 60, o filme de Jarmusch em um cinema antigo –, por outro também resgata potências primordiais da Sétima Arte.
A atemporalidade se mostra mais associada ao estado emocional do que a qualquer linha de raciocínio lógico. Essa mistura de períodos diferentes remete não apenas a homenagens específicas, e que por sua vez atestam ao mero fascínio de se permitir escapar do real, como também afilia o longa a formas específicas de se decompor o visual pela linguagem cinematográfica.
É o caso da menção a Robert Bresson, mestre do cinema francês que se popularizou pela forma única de filmar personagens e narrativas, marcadas por um esvaziamento bastante particular. A repetição de movimentos presente em seu método pode ser resgatada como marca de seu cinema “apático”, que reconhece o limite das próprias imagens e atenta, na extração de singelas expressões e gestos, para o que se esconde através do plástico. Existe um choque constante entre o que está ali, em movimento, e o que inexiste, ou deixou de existir, através dos rostos, corpos e formas registradas.
Não é exatamente o que Kaurismäki faz aqui, mas o uso de convenções da própria filmografia e o visual maneirista – que abusa dos tons saturados e remete a um audiovisual mais lúdico, de afirmação da própria fantasia – finalizam esse senso contrastante. Um filme que opera pela linha de uma contradição eterna, extraindo uma pulsão verdadeira de personagens aprisionadas em tempo e espaço. É como se o afinamento extremo de seus planos admitissem uma falta de sensibilidade – talvez pelo esgotamento, pela repetição ou mesmo pela suspensão da ingenuidade no diálogo com o imagético – do próprio espectador, o forçando a superar a inércia que compartilha com as personagens e possivelmente resgatar uma conexão mais pura com o que está exposto.
No processo, pulsam paixões tão íntimas quanto universais, voltadas ao casal e ao cinema como forma em si. Tem-se, assim, uma bela homenagem à Sétima Arte e a suas potências mais puras. Das canções no karaokê à belíssima piada final, Aki Kaurismäki propõe uma desconstrução que de maneira alguma se opõe à imagem. Muito pelo contrário, declara o seu amor e manifesta a deliciosa facilidade de se permitir se apaixonar, novamente, por elas.
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