Monster (2023, dir. Hirokazu Kore-eda)

Foto: Divulgação/Imovision

Priorizando o realismo de determinadas ações humanas, Kore-eda se afasta da típica digressão sobre a moral humana para tratar dos traços que buscamos esconder.

Davi Krasilchik 

Há muito que se esconde perante os nossos olhos, e nem tudo é o que parece ser. Talvez seja esse um dos maiores desafios da comunicação: a compreensão do outro. Afinal, são inúmeros os fatores que fragmentam a personalidade humana, dissociando personas e essências de forma potencialmente irreversível. Ao tecer uma teia de personalidades difícil de se decifrar, Hirokazu Kore-eda retoma os seus estudos a respeito do espírito humano, trazendo em Monster um belíssimo conto sobre nossas camadas mais profundas.

Quando começa a estranhar o comportamento do próprio filho, Minato (Soya Kurokawa), a superprotetora Saori (Sakura Ando) passa a suspeitar de um de seus professores, Michitosi Hori (Eita Nagayama). Ela decide o confrontar na diretoria do colégio, iniciando um conflito que servirá de estopim para a revelação de vários segredos.

Ainda que a composição de suas imagens esteja também baseada no realismo – traço marcante da câmera paciente do diretor -, seria injusto ignorar o misticismo por detrás do projeto. A começar pelo próprio título, ele resgata a ideia da criatura assustadora para representar o conjunto de personagens que toma diante de si. Eles transferem as suas interpretações uns para os outros, se metamorfoseando em conjunto conforme atravessam as suas próprias angústias e tensionam suas relações na forma redutora de se enxergarem entre si.

É como se cada rosto representasse uma esfera de um mesmo todo, uma mesma e mutante figura, que simboliza o escopo temático que Kore-eda volta a explorar. Por mais que em seu trabalho anterior, Broker (2022), essa mesma abordagem pontue um reducionismo, essa lógica de construção compartilhada não simplifica as principais personagens. Pelo contrário: permite revisitar acontecimentos por múltiplas perspectivas, que adicionam detalhes a cada passagem.

Embora esse recurso não seja inédito – resgatando Rashomon, clássico de Akira Kurosawa que popularizou esse tipo de estrutura -, chama a atenção como Kore-eda propõe um andamento diferente desse exemplo. Enquanto o filme de 1950 abarca uma observação mais metafísica de suas personagens, discutindo a moral humana de uma perspectiva mais etérea – e ressuscitando, inclusive, um morto para acrescentar a sua própria visão de um certo evento -, aqui tudo se pauta em um campo mais concreto, onde a materialidade dos planos serve justamente à sua desconstrução.

Os planos abertos sugerem a presença de um observador, que paira perante as ações das personagens. O incêndio ao qual o filme retorna, indicando as mudanças entre as linhas narrativas, representa os dilemas de suas personagens, queimando, à distância, enquanto convida o elenco a questionar suas possíveis causas. É nesse trâmite entre o naturalismo e pontuais escolhas estéticas que o filme passa a suspender o que se vê, sugerindo a existência de incontáveis questões por detrás das relações estabelecidas.

O longa inclusive se dedica a uma interessante construção de um ciclo de falências, apresentando uma derrocada de relacionamentos que parece ser transmitida de núcleo para núcleo. Da morte do pai de Minato – suspenso em imagem de altar -, passando pelo declínio do namoro vivido pelo professor Hori, até o bullying praticado pelas crianças da escola, tudo aponta para modelos nucleares de interações, inexistindo um exemplo para nortear o garoto.

Em um mundo guiado por telas virtuais, distâncias e rupturas – conforme os enquadramentos frequentes em que algum objeto, parede ou estrutura obstrui parte do campo de visão -, determinados laços se tornam cada vez mais ruidosos, e é por esse caminho que Monster decide seguir. Se revela um filme menos interessado no estudo da moral humana e sim em revelar a dicotomia entre aquilo que nos autorizamos a revelar e o que optamos por esconder.

Isso fica especialmente claro na dinâmica entre Minato e seu amigo Yori (Hinata Hiiragi), criança que parece ser desprovida de qualquer maldade. Juntos, eles testemunham o nascer de uma conexão proibida, que se esgueira por entre os trilhos de uma antiga ferrovia no interior de sua cidade. Eles saltam por entre os túneis e escutam o ecoar dos próprios gritos, imersos nessa realidade paralela que criam para si. É um mundo proibido, que só poder ser protegido através da mentira.

Criando narrativas na forma como difunde acusações e pré-julgamentos, talvez seja a mentira a força cimentadora do projeto, unificando essa teia de personagens quebrados, consumidos pelos traços que não podem permitir vir à tona. Resistindo a uma apelação imagética óbvia, tem-se assim, em Monster, uma paciência em se observar essa dualidade em cada um de seus rostos, priorizando as suas ações e como elas os conectam mais do que as incontáveis digressões filosóficas que muitos já fizeram. Termina como um lindo conto sobre relações humanas, que reconhece a própria incapacidade de decifra-las por completo.

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