Análise do relacionamento de Glauber Rocha com a ditadura militar, da censura aos elogios, tentando entender o posicionamento do diretor e como isso se relaciona com seu cinema
Por Eduardo Lima
Glauber Rocha, baiano e principal autor do Cinema Novo, tinha 24 anos e um filme no currículo quando a ditadura militar brasileira começou, em 1964. Mesmo antes disso, Glauber já havia tido seus encontros e desencontros com a censura brasileira, fosse encenando poemas com colegas ou com seu primeiro filme, Barravento, que foi liberado só para maiores de 18 anos por “conter mensagens subversivas de profundidade de maneira subliminar tão acintosa que chega a poder ser considerada direta”. (1)
Essa situação, é claro, só iria piorar com a chegada do regime militar, que entre 1964 e 1985 mandou e desmandou no Brasil, passando por fases de extrema repressão e de mais moderação, aspirando por pelo menos uma aparência semi-democrática. No primeiro ano de ditadura, Glauber lançou seu filme mais conhecido até hoje, Deus e o diabo na terra do sol. A censura seria até óbvia demais: um filme que trata da luta do sertanejo pela posse da terra em que trabalha, em um momento em que o presidente tinha sofrido um golpe militar por, entre outras coisas, defender uma reforma agrária vista como “comunista”, não teria espaço no regime que depôs o reformista.
Não foi isso que aconteceu: Glauber quase foi censurado, mas porque o filme talvez fosse motivo de ridículo para o Brasil pela forma como apresentava a pobreza e a miséria do país (2). Como Elio Gaspari, o grande cronista da ditadura militar brasileira, escreveu em seu livro A Ditadura Envergonhada: “O filme acabou liberado [da censura], mas o regime iniciava sua estranha relação com Glauber, a quem, por não conseguir admirar, entender nem controlar, trataria esquizofrenicamente, indo da perseguição ao flerte, sem nenhum sucesso.” (3)
Um dos capítulos de perseguição se deu no ano seguinte, quando Glauber passou 18 dias preso por vaiar o presidente militar Castello Branco, que logo recebeu um telegrama assinado por Truffaut, Godard, Resnais e outros grandes nomes do cinema mundial pedindo pela libertação de Glauber (4). O foco do regime estava em criar uma imagem externa de alta cultura e erudição, mas, internamente, os revolucionários da arte que trabalhavam para construir essa mesma imagem eram reprimidos e incompreendidos.
Em 1967, quando foi lançado o próximo filme de Glauber, o clima do país era diferente. A repressão militar aumentava, relatos de tortura começavam a aparecer e, frente a essa realidade, parte da esquerda começava uma tentativa de radicalização. Dentro desse contexto, Terra em Transe surge como um retrato do fictício país Eldorado, que compartilhava muitas similaridades com o Brasil e com o resto da América Latina.
Em pleno 1967, a personagem Sara conta na tela um relato de tortura por ter protestado. Um filme lançado em 1967 olhou nos olhos do espectador e disse “A luta de classes existe. Qual é sua classe? Vamos, diga!” Terra em Transe era perigoso, e continua perigoso hoje. Crítica ferrenha ao fisiologismo disfarçado de conservadorismo da direita brasileira e também ao populismo de uma esquerda brasileira viciada no poder, e não poder do povo.
O filme foi inicialmente censurado por retratar miséria, luta de classes, um padre em situações comprometedoras e “insinuações contra a verdadeira e autêntica democracia” (5), mas depois liberado sem cortes para ser exibido no festival de Cannes. Alguns relatos da época dão a entender que o filme foi liberado por ser “ininteligível, confuso e caótico” (6), o que faz lembrar a ideia de Elio Gaspari de que a ditadura não conseguia admirar ou entender Glauber.
Em 1968, o Ato Institucional n°5 é instaurado, ampliando os poderes do governo militar para censurar e reprimir manifestações contrárias. Depois de seu filme de 1969, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, Glauber se exila do Brasil ao perceber que não poderia continuar fazendo seus filmes de acordo com a cartilha do Cinema Novo. Anos depois, por meio da Comissão da Verdade, foram encontrados indícios de que Glauber estaria marcado para morrer, por ser visto como “líder da esquerda no cinema” e um dos mais atuantes na “campanha contra o país”.(7)
Já no exterior e na década de 70, a parte mais curiosa e inesperada do relacionamento de Glauber com a ditadura aparece. Sobre Golbery do Couto e Silva, um dos mentores do golpe de 64 e idealizador do Serviço Nacional de Informações, Glauber disse: “O mais alto pensar da raça ao lado do professor Darcy” (8). Esse “professor Darcy” era Darcy Ribeiro, ministro da Educação do presidente deposto João Goulart, ou seja, do lado oposto de Golbery.
Em 1981, Glauber foi além, chegando a se encontrar com João Figueiredo, último presidente militar, enquanto este estava em Portugal. A atitude de Glauber foi muito criticada por seus companheiros de Cinema Novo, mas ele se defendeu em entrevista para o jornal O GLOBO, 8 dias depois do encontro com o presidente: “Fui falar com Figueiredo porque concluí que a sua viagem à Europa tinha inaugurado uma nova geopolítica. Figueiredo estabeleceu um equilíbrio nas relações entre os países do Terceiro Mundo.”(9)
Glauber não se importava com partidos ou rótulos ideológicos. Em entrevista para a Folha de S. Paulo em 1979, Glauber disse: “O que interessa é a revolução brasileira, a revolução socialista brasileira. Como formular isso, como formular um socialismo brasileiro dentro da realidade da América Latina, do Terceiro Mundo. Como formular o sucesso de um socialismo rigorosamente democrático.”(10)
Glauber acreditava numa política, numa ideologia e numa visão de mundo verdadeiramente brasileiras, tropicais. (“Oswald de Andrade é melhor do ponto de vista do texto brasileiro revolucionário do que Marx e Engels”, na mesma entrevista para a Folha) Uma das intenções de seu cinema e uma de suas aspirações políticas era conceder ao Brasil um papel atuante e central no novo mundo que despontava na segunda metade do século XX. O que talvez seus conterrâneos não entendessem, do mesmo modo que a ditadura não entendia, é que Glauber não pensava o mundo binariamente, mas sim metafórica e metafisicamente. Como em Terra em Transe: “Um homem não pode se dividir. Política e poesia são demais para um só homem.”
Glauber Rocha foi um de muitos artistas visionários brasileiros que passaram sem ser entendidos, admirados e muito menos controlados pela ditadura militar. Meio século depois, com novos militares no poder (mesmo que eleitos democraticamente), assistimos ao mesmo filme: a Cinemateca queima enquanto, para Bolsonaro, cinema só serve para propaganda ou para causar pânico moral. Não tem aulas de cinema na Academia Militar de Agulhas Negras.
REFERÊNCIAS
- http://lounge.obviousmag.org/bibliotela/2014/11/a-censura-na-vida-de-glauber-rocha.html
- Idem
- GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada, páginas 219–220. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
- https://g1.globo.com/politica/noticia/2010/05/comissao-anistia-glauber-rocha-viuva-tera-pensao-de-r-2-mil.html
- https://www.papodecinema.com.br/noticias/os-pareceres-ignorantes-da-censura-imposta-pela-ditadura-ao-cinema-brasileiro/
- https://www.youtube.com/watch?v=Y7ZqwzbdHkM
- https://veja.abril.com.br/brasil/para-comissao-da-verdade-ditadura-planejava-morte-de-glauber-rocha/amp/
- https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/glauber-rocha-cineasta-perseguido-ditadura-elogiou-mentor-golpe-64/
- https://blogs.oglobo.globo.com/blog-do-acervo/post/amp/esse-negocio-de-esquerda-e-direita-esta-superado-glauber-rocha-e-o-abraco-no-general-joao-figueiredo.html
- https://www1.folha.uol.com.br/amp/folha-100-anos/2021/03/joao-figueiredo-e-um-genio-disse-glauber-rocha-a-folha-em-1979.shtml
*Sobre o autor: Eduardo Lima é um estudante de jornalismo paulistano de 19 anos. ‘Comecei a levar mais a sério meu interesse por cinema durante a pandemia. Sou apaixonado por comédias que fazem chorar e ficções científicas que deixam você pensando por meses.’ Além de filmes, também gosta muito de música, ler, falar sobre religião e tentar entender a política brasileira.