Em 1973, Laura Mulvey lançaria sua tese “Prazer visual e cinema narrativo”, que explicita uma perspectiva crítica ao papel da mulher na sétima arte
Por Juliana Hipólito
Entre as décadas de 60 e 70 nos Estados Unidos e na Europa ocorria a segunda onda do movimento feminista, marcada, dentre outros elementos, por um debate combinado entre psicanálise e críticas marxistas. Dos grupos de estudos “The History Group” e “The Feminist Studies Group” surgiu, através da crítica de cinema e cineasta britânica Laura Mulvey, a aclamada e discutida tese “Prazer visual e cinema narrativo” em 1973. Nela, é apresentado o termo male gaze, que veio a repercutir na cultura pop e que também reverberou para todas as demais artes, sendo uma das suas aplicações o famoso discurso do grupo ativista Guerrilla Girls a respeito das incontáveis obras cujo nu é feminino, porém, em contrapartida, os artistas responsáveis por elas são, em sua grande maioria, homens.
Mulvey, em entrevista à Revista Estudos Feministas, ressalta como o artigo recebeu maior impacto das discussões de movimentos feministas da época do que dos próprios estudos de cinema. Sua intenção com a tese era de focar sobretudo no cinema hollywoodiano, do qual era fã, e trazer uma reflexão que de fato repensasse esse modo de fazer audiovisual, em vez de descartá-lo completamente.
Mas, afinal, o que seria esse male gaze? O gaze é um termo em inglês que remete a um olhar, porém não um olhar comum, e sim aquele que encara, que fixa, que penetra, que objetifica. É, por extensão, um “olhar masculino determinante [que] projeta sua fantasia na figura feminina”. A mulher projetada nas telas, para além de ser exibida, é simultaneamente olhada. Na verdade, é como se ela fosse especialmente exposta naquele espaço para atrair olhares — os quais são majoritariamente masculinos, assim como os que estão por trás da concepção dessas figuras femininas.
“Prazer visual e cinema narrativo” menciona também a escopofilia atrelada ao voyeurismo causado pelas representações femininas a partir desse male gaze. A escopofilia, para Freud, é “uma pulsão que reage ao estímulo do olho quanto à realidade exterior e percebe o ‘outro’ como objeto de desejo”. O prazer escopofílico, dessa forma, seria o suprimento de instintos sexuais a partir do olhar. Já para Mulvey, a escopofilia está associada a uma sociedade patriarcal, heteronormativa e branca, sendo a figura feminina um significante do masculino. Isto é, é a partir da transposição das fantasias, desejos e obsessões masculinas para esse feminino retratado que o homem se faz no mundo. A mulher é uma simples portadora de significado, e não uma produtora de significado.
Outra estrutura de prazer no olhar sobre a qual a crítica teoriza é a da identificação com a imagem vista. Segundo ela, “o homem hesita em olhar para o seu semelhante exibicionista”, por isso é necessário equilibrar as cenas da mulher como espetáculo com um personagem masculino, detentor de poder e possuidor dessa figura feminina, para assegurar ao espectador identificação com e participação no poder do personagem. Assim, seja dentro ou fora da diegese, o feminino é possuído pelo masculino, tornando a narrativa mais agradável de ser vista por esse determinado público.
Ainda, também cabe falar aqui sobre o complexo de castração. É ao se deparar com um indivíduo que o ameaça, através da fantasia inconsciente de castração, que todos os medos, fobias e demais manifestações neuróticas se dão. Para solucionar esse problema, Mulvey aponta duas saídas básicas escolhidas pelos homens: em primeiro lugar, punição ou redenção do objeto culpado. Em segundo lugar, fala-se sobre uma rejeição da castração, transformando, na maioria dos casos, a figura representada em fetiche, de forma a torná-la tranquilizadora ou agradável ao invés de perigosa.
Em discussões mais recentes após o lançamento da tese aqui abordada, Mulvey e outras teóricas apontam como esse “olhar masculino” é, na verdade, uma posição que pode ser assumida também por mulheres. Entretanto, com corpos femininos é mais possível e provável que ocorra um distanciamento do que está sendo retratado na obra, culminando na compreensão de que a posição feminina ocupa posições contingenciais, e não essenciais, ou seja, é possível que toda essa composição machista seja devidamente contornada e repensada. A crítica faz um paralelo e uma ressignificação do mito de Pandora, no qual a mulher não é mais culpada por todos os males do mundo, mas sim imaginada como ser curioso, disposto a decifrar a imagem, de saber mais a fundo. É o que Laura chama de epistemofilia, em contraposição à escopofilia fetichista.
Laura Mulvey conta para a Revista Estudos Feministas que sua tese, justamente por não ter sido elaborada com um viés acadêmico e sim político, foi feita para causar estranhamentos e posteriores discussões. Não como algo definitivo, tampouco como uma categorização universal do cinema — afinal, ela se referia somente à Hollywood. São reflexões cujo objetivo era falar de representações que também visassem aos campos psicanalíticos e semióticos, não somente como um mero reflexo do social. Contudo, não é de se assustar que até hoje sejamos acometidos com obras audiovisuais permeadas pelo dito male gaze e outros elementos abordados em seu texto, mas com o avanço das discussões é possível exercitar o discernimento e o olhar distanciado, curioso, a fim de debater sobre qual perspectiva gostaríamos de retratar as personagens que criamos e assistimos.
*Juliana Hipólito é estudante de Cinema e Audiovisual pela ESPM. No que tange ao cinema, gosta de fazer análises semióticas e pensar na sétima arte como a linguagem artística mais poderosa, pois abarca um potencial de articulação de massas e de disseminação de soft power.