O Cinema de Lina Wertmüller

Por Felipe Palmieri*

“A Aristófanes italiana”, é a descrição dada à Lina Wertmüller pela autora da Lincoln Film Society, Diane Jacobs, na década de 70. Essa comparação com o comediógrafo grego não é à toa, e descreve de forma sucinta quem foi esta cineasta cuja arte, tal qual a do dramaturgo, aborda assuntos relevantes e complexos com tom cômico e leve. A mera combinação temática e tonal de seus filmes é suficiente para gerar controvérsia, sendo para muitos exageradamente leve e ambígua. Efetivamente, o discurso que permeou a produção cinematográfica da recém falecida diretora foi pautado em polêmicas e contradições, todas justificadas nas complexidades e perspectivas de suas obras.

Tendo roteirizado e dirigido mais de 30 filmes — além de seu trabalho como escritora — foi extremamente prolífica durante toda a vida, nunca deixando de trabalhar tanto no cinema, quanto no teatro ou literatura. O espírito de rebeldia que viria a ser retratado em seus filmes sempre acompanhou Lina, seja em sua vida escolar, universitária, ou já profissionalmente, no âmbito político. Aliada de causas comunistas e anarquistas na Itália, além de autoproclamar-se como feminista em um mundo ainda hostil à ideia, tais posicionamentos formam o cerne de seu corpo de trabalho e das contradições que a viriam por definir.

Formada teatralmente, seu contato com atores foi o que acabou por trazer Wertmüller ao cinema, já na década de 50. Seu trabalho inicial foi geralmente na função de assistente de direção, e após participar de alguns filmes — devido ao contato com Marcello Mastroianni — conseguiu participar do clássico homônimo de Federico Fellini, . A colaboração e o trabalho em um filme de tamanha escala abriu muitas portas para Wertmüller. Pouco tempo depois, com praticamente a mesma equipe de , foi feito o primeiro filme da diretora Os Inativos (I Basilischi) em 1963.

Apesar da equipe, o filme é inteiramente autoral. Os temas de Lina Wertmüller já estão ali, mesmo que alguns em estado embrionário, como precursores do que estava por vir na carreira da diretora. O filme narra a história de um grupo de jovens de um vilarejo ao sul da Itália, os quais se encontram sem perspectiva e sem rumo. O elenco do filme foi composto quase que inteiramente por atores de pouco renome e experiência, os quais incorporaram ao filme uma crueza remetente ao neorrealismo, que aliada à delicadeza do olhar de Wertmüller, sustentam uma história tão minimalista quanto expansiva. Essencialmente, Os Inativos é sobre as ambivalências da cultura italiana, da tradicionalidade ao progressismo, das implicações e percepções que a cultura imbuí aos personagens. O filme retrata uma existência indecisa, que é como coloca a autora Elizabeth Sussex da revista Sight and Sound (tradução livre): “Aqui nada muda pois ninguém tem energia para agir com suficiente sinceridade: flertes com garotas camponesas acabam em casamentos arranjados, e ambições são gentilmente apagadas com o tempo”.

Os três jovens protagonistas de Os Inativos caminhando sem rumo

Os enfoques políticos e os personagens sudestinos que viriam a acompanhar a obra de Wertmüller estabelecem-se desde I Basilischi, porém é na produção subsequente que os elementos da visão autoral da diretora se estabelecem. Seguindo seu primeiro filme com comédias menos expressivas, que se encaixavam no veio comercial da Commedia all’italiana, como Questa volta parliamo di uomini (1965) e Rita la zanzara (1966) — este que demarca o início da parceria com o ator Giancarlo Giannini — Lina estabelece o aspecto hílare, grotesco e irreverente que demarcaria a abordagem de seus filmes de maior sucesso.

A partir de então, a porta foi aberta para quem viria a ser a primeira mulher indicada ao Oscar de melhor direção. A posição de Wertmüller passou a ser de desbravadora, a primeira a trespassar muitos preconceitos da indústria americana e ser de fato reconhecida. Foi um marco histórico e um feito admirável, mas que enquadra ainda mais os paradoxos que perseguem a carreira de Wertmüller, pois se havia uma cineasta mais distante em repertório e estilo do gosto tradicionalmente peculiar do Oscar, era ela. Na ocasião da indicação inicial, com o filme Pasqualino Settebellezze (1975), não saiu vitoriosa — mas a mera menção já foi um marco vitorioso por si só. Em 2019, Lina Wertmüller foi presenteada com o Oscar Honorário pelo conjunto da obra de sua carreira.

O estilo divergente da diretora era evidente tanto em forma quanto em conteúdo. Ela, que foi a diretora a colocar diretoras no mapa, como descrito pela autora Molly Haskell, porém filmava protagonistas homens, misóginos, e que não necessariamente encontram julgamento ou punição por suas ações. Os paradoxos são a essência estilística do cinema de Wertmüller, com filmes sempre repletos de textos e subtextos políticos e sociais relevantes, mas ao mesmo tempo as personagens beiravam a paródia e exagero. A cineasta de criação do norte da Itália, em Roma, que no entanto resolveu ter como enfoque narrativo a população do Sul — alegando preferir a cultura de ironia e alegria. A politização estética dos corpos nos filmes de Lina aliava-se à caricatura, ao uso cômico destes próprios.

As contradições eram a base da ferramenta mais poderosa na montagem de seus filmes: o sarcasmo. Como colocado pelo autor Peter Biskind, os personagens de Wertmüller são destruídos pela própria cegueira e incapacidade de compreensão do mundo, e dos outros. É a evidente incongruência que eleva o sentimento de indignação e escárnio, que cria tanto a simpatia quanto o ódio pelos personagens e situações — mas acima de tudo é o que define o engajamento que os filmes proporcionam, uma prioridade vocalizada pela diretora na tentativa de alcançar como público as massas.

No filme Mimì metallurgico ferito nell’onore (1972) a estética reconhecível da diretora tomou forma de fato. Foi a culminação da década anterior, de aperfeiçoamento de ideias e estilos, numa obra de teor político descarado e que se apropria veemente da fisicalidade dos corpos em cena. O filme conta a história de um trabalhador siciliano, que foge das pressões da máfia local, acaba se aliando à causa comunista mas se prova egoísta e tradicionalista no fim.

A personagem de Fiore (Mariangela Melato), interesse amoroso do protagonista Mimi (Giancarlo Giannini) é provavelmente a figura feminina mais admirável do catálogo de personagens da diretora, sendo consistentemente uma mulher íntegra e segura. Fiore adere a seus próprios pressupostos mesmo quando em dificuldade, e é uma personagem que entende intrinsecamente a inseparabilidade do pessoal e político.
Porém, após a fundamentação da estética da diretora, o aperfeiçoamento derradeiro veio com Pasqualino Settebellezze (1975). O filme que lhe rendeu verdadeiro reconhecimento internacional não o fez à toa. É o ápice tanto das idiossincrasias vulgares de Wertmüller quanto do ideário político-social que dá estrutura à narrativa. Aqui, acompanhamos um homem charmoso e patriarcal de Nápoles, Pasqualino, em duas temporalidades diferentes. Em uma linha, temos Pasqualino em sua cidade natal vivendo seus causos amorosos e familiares que alcançam condições dramáticas no desenrolar de eventos. A outra linha é no futuro, no qual Pasqualino é um desertor do exército italiano durante a 2ª Guerra Mundial e eventualmente acaba em um campo de concentração.

Pasqualino no campo de concentração durante a 2ª Guerra Mundial

A justaposição das duas linhas temporais ao longo do filme serve para evidenciar mais escancaradamente o sarcasmo formal da linguagem de Wertmüller, e acaba por efetivamente expor suas próprias contradições como construção temática. O protagonista da história é um ser humano terrível, que é colocado em uma situação que consegue ser mais terrível ainda. Porém, na falha de caráter cada vez maior que o paralelismo narrativo nos permite observar, Pasqualino é um homem que faria de tudo para sobreviver. E nas palavras da própria Lina, essa sobrevivência a qualquer custo é onde jaz a humanidade — Wertmüller afirmou em entrevista em 1994 que “No final, aqueles que morreram por seus ideais estão mais vivos que Pasqualino”.

O filme mais popular da carreira de Lina Wertmüller atingiu tal patamar através da complexidade e relevância discursiva, aliados ao rigor formal inovador e inventivo. Foi praticamente um fenômeno cinematográfico, e definitivamente uma das obras mais discutidas no período que foi lançado.

O apelo às massas buscado pela realizadora jamais conseguiu se alinhar novamente de forma tão perfeita com a recepção intelectual fervorosa de Pasqualino Settebellezze, mas não há demérito algum nisso, pois o apelo ético de Wertmüller sempre foi mais processual que resultista, e a disposição e determinação jamais a abandonaram. O que seguiu seu sucesso internacional foram acertos e erros, clamor público ou crítico, ou obras de menor impacto. Mas todas com as impressões digitais características da diretora, de uma mulher cuja obra controversa e influente foi, acima de tudo, genuína.

*Sobre o autor: Felipe Palmieri é estudante de Cinema na FAAP. Absolutamente fascinado por todas as pluralidades e sutilezas que a linguagem cinematográfica é capaz de abrigar, e pelas infinitas perspectivas que foram e serão materializadas através disso.

FONTES:

Alves, Cláudio. “Lina Wertmüller | A rainha anarca do cinema italiano”. Magazine.HD, Abril de 2017. Disponível em:<https://www.magazine-hd.com/apps/wp/lina-wertmuller-mulheres-realizadoras-cinema-italiano/.

Astle, Richard. “Seven Beauties Survival, Lina-style”. Jump Cut n° 15, 1977. Disponível em:<https://www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/JC15folder/7Beauties.html>.

Biskind, Peter. “LINA WERTMULLER: The Politics of Private Life”. Film Quarterly, vol. 28, no. 2, University of California Press, 1974. Disponível em:<https://doi.org/10.2307/1211628>.

Bullaro, Grace Russo. “Man in Disorder: The Cinema of Lina Wertmüller in the 1970s”. Troubador Publishing Ltd, 2006. Disponível em:<https://books.google.com.br/books?id=6su9HE08ClIC&lpg=PP1&hl=pt-BR&pg=PP1#v=onepage&q&f=false>.

Diaconescu-Blumenfeld, Rodica. “Regista Di Clausura: Lina Wertmüller and Her Feminism of Despair.” Italica 76, no. 3, 1999. Disponível em: <https://doi.org/10.2307/479912>.

Jacobs, Diane; Riley, Brooks. “Lina Wertmuller: The Italian Aristophanes?”. Film Comment; New York Vol. 12, Iss. 2, 1976. Disponível em:<https://www.proquest.com/scholarly-journals/lina-wertmuller/docview/210265585/se-2.