Acompanhando a vida do ator de teatro Edson Aquino, o documentário brinca com o fazer de seu personagem para discutir a performance como maneira de anular a própria realidade
Davi Krasilchik
Todos perdem traços de si mesmo perante a uma câmera. A mera presença de uma lente é capaz de transformar todo um comportamento, exigindo uma leve adulteração da própria essência. Levando a vida profissional como um especialista nesse último fazer, Maçãs No Escuro brinca com essas possibilidades, magnetizando o espectador por meio dos absurdos que se sobrepõem à realidade.
O filme segue as filmagens de uma suposta equipe gringa designada para acompanhar o dramaturgo Edson Aquino. Ela registra múltiplos aspectos de sua vida, na tentativa de produzir um material interessante para circulação. Conforme as gravações se aproximam mais de seu personagem-objeto, a dificuldade de discernir realidade e ficção se torna ainda maior.
Ainda que o filme caminhe por esse viés temático, pensando tais intersecções como maneira de fomentar a curiosidade pelo protagonista, ele tem menos interesse em uma discussão mais metafísica sobre o desaparecimento perante a construção de uma imagem, do que em homenagear esse fazer como manifesto da própria existência. Isso fica claro desde as extrapolações de algumas encenações, em que surgem comentários cômicos da equipe de câmera, por exemplo, exigindo a repetição de uma determinada cena.
Desvencilhando o filme de uma abordagem próxima de Eduardo Coutinho – grande explorador dessa noção de se atuar perante um registro imagético –, essa veia humorística do projeto ironiza justamente a sobreposição entre verdade e mentira. Ela pareia a plateia ao personagem em seu estado de desilusão, temeroso com os próprios rumos de sua vida e encontrando no teatro não um complemento, mas uma fuga exasperada.
É claro que o projeto ainda prioriza a construção de uma figura agradável, tranquila, e em certas ocasiões até desleixada com as próprias ações. Não existe uma aposta em desenvolver tensão como representante desse estado de vida, e as reflexões a respeito da dificuldade de se manter no mundo da arte, ou sobre a consumação de sonhos pessoais dentro de uma lógica capitalista, acabam surgindo naturalmente.
Nem por essa proposta mais leve, que exige menos do público, entretanto, o filme deixa de propor situações inventivas, provavelmente roteirizadas, e se desvencilha de uma câmera meramente observadora. É o caso da inteligente introdução, que se aproveita de um certo anonimato de Edson, pouco conhecido no meio teatral, e vai revelando aos poucos, na casa em que se passa, que aquele espaço não pertence ao protagonista. Ele e seus amigos são logo expulsos, e tudo que foi dito até aí é colocado em suspensão.
Mais ao final, a cena que justifica o título também merece destaque. Edson visita o jardim da casa de seus pais, discutindo sobre a sua criação e sua atual relação com a dramaturgia. Talvez o momento mais sóbrio de todos, ele entra em um pequeno sótão mal iluminado, onde fala sobre o desejo de desistir de tudo aquilo. Conta a história de uma antiga árvore que o pai teve de cortar, na infância, e como a diminuição da altura lhe permitiu colher maçãs. Ainda que pareça o momento de uma fala mais genuína e direta, a ambientação reforça a dualidade do filme.
Estamos falando desses gestos, dessas máscaras e aspectos que se esgueiram para o escuro, incompletas e desejosas por serem decifradas. Nada é totalmente uma coisa ou outra, e no trânsito entre esses estados, o bom humor do filme relembra a importância de se fabular sobre o próprio ser. Tem-se assim, em Maçãs No Escuro, uma belíssima ode à própria existência, e os caminhos que a imaginação tende a oferecer.
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